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E por que odiá-las não é de fato culpa sua

Photo by Simon Shim on Unsplash

Estive fora por 48 horas de casa e da internet. E se por um lado isso foi bom para leitura e contemplação, sinto que foi em um momento com muita dor e tristeza. Olhando agora vejo tudo isso como um desfecho trágico de uma peça de teatro monumental chamada Brasil. Não há para onde escapar, e tudo sempre volta a se repetir, para nosso próprio desespero.

A verdade é que nunca antes fomos tão nocivos à vida e ao planeta. Complementando isso, temos de conviver com ideias igualmente nocivas e que nos afastam uns dos outros. Quem poderia fazer alguma coisa está muito ocupado e abstraído da verdade, e quem tem a verdade não pode fazer nada por falta de poder ou articulação. Junto com a tristeza geral somam-se a tristezas individuais que, se não alteram o rumo das coisas, e talvez por isso mesmo doam mais, também nunca nos abandonam.

Photo by Matthew Henry on Unsplash

A cultura atual da com-paração constante não admite a negatividade do atopos [não-lugar, não passível de ser mapeado]. Estamos constantemente comparando tudo com tudo, e com isso nivelamos tudo ao igual, porque perdemos de vista justamente a experiência da atopia [aquilo que torna único] do outro. (…) Tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo.

Hoje, vivemos numa sociedade que está se tornando cada vez mais narcisista. A libido é investida primordialmente na própria subjetividade. O narcisismo não é um amor próprio. O sujeito do amor próprio estabelece uma delimitação negativa frente ao outro em benefício de si mesmo.

Han, Byung-Chul. Agonia do Eros . Editora Vozes. Edição do Kindle.

Farão cinco anos que não trabalho como assalariado. Neste tempo ingressei na minha segunda faculdade, virei bolsista e me casei. Ainda que não tenha filhos, como todos tenho necessidades, e sendo as coisas como são, a idade que chega, novas necessidades surgem ao passo que outras ainda permanecem. Não é apenas a eventual conta do hospital que precisa ser paga, mas a do uber e da internet. É, também conta de luz, de água e de alimentação. É a prestação daquele novo móvel ou utensílio. As coisas que se tornam obsoletas, sendo muitas vezes programadas para isso, e até tentamos ser minimalistas, mas seguimos precisando de dinheiro.

Por outro lado, ter um tempo todo meu é lutar contra a toxicidade do próprio tempo e encarar todos os dias a mesma dúvida: estou sendo útil de alguma forma? O tédio e a monotonia também, que facilmente se alocam e que é preciso resolver como é preciso escovar os dentes (sem obsessão, no entanto). Até me vejo cheio de planos para mudar a situação, mas que não se realizam simplesmente por que há algo mais acontecendo no fundo que ainda não foi concluído; o trabalho é um meio para um fim, mas e o fim, qual é? Sim. Ela mesma. A realização.

A minha realização é saber. Saber que tem pessoas que me amam, que me querem bem e me aceitam em minhas limitações — e carrega-las bem junto ao coração. Saber, intimamente, que enquanto eu tiver possibilidades estarei à espreita — para ajudar ou pelo menos não atrapalhar quem está ajudando. Como o monge taoista, conheço o mundo através da janela sem sair de casa. Não existe tarefa fácil, mas simplificar e amar mais é aquém do ideal. É o meu próprio ser.

O sujeito narcísico, ao contrário, não consegue estabelecer claramente seus limites. Assim, desaparecem os limites entre ele e o outro. O mundo se lhe afigura como sombreamentos projetados de si mesmo. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade. Ele só encontra significação ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo. Vagueia aleatoriamente nas sombras de si mesmo até que se afoga em si mesmo.

Han, Byung-Chul. Agonia do Eros . Editora Vozes. Edição do Kindle.

Nestes dois dias sem internet e no interior eu pude ler com calma alguns autores que estavam na lista, entre eles Byung-Chul Han. Embora sejam de pouca extensão, suas obras são densas em referências e análises, e tocam em pontos nevrálgicos de nossa sociedade ocidental contemporânea. Sei que a mim tocou, mesmo na situação excepcional que me encontro e que descrevi acima. Isso por que não é uma questão particular mas global, e o social é uma parte integrante do nosso ser.

Ele fala de uma sociedade que saiu da mera disciplina (o dever ser) e se dirigiu para a sociedade do desempenho (o do poder). Ele fala de uma morte lenta e gradual do Erótico por que o consumismo ele mesmo não precisa de outro, mas apenas do igual — dissolvendo assim os limites do narcisismo, inundando a sociedade com iguais.

No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.

Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço . Editora Vozes. Edição do Kindle.

Photo by Randy Jacob on Unsplash

Isso é bem comum — já que as pessoas agora são motivadas por si mesmas e motivadas pelos outros a elas mesmas se motivarem. O risco maior nisso tudo é que elas forcem seu sistema neural a tal ponto que sofram verdadeiros infartos espirituais, transtornos e déficits de atenção e depressão recorrente por que não se encaixaram no ideal da sociedade do desempenho, mas principalmente, por que escassearam o próprio sistema de descanso e reparo. Tomando signo por significado, elas esquecem de si mesmas. Se transformam em robôs.

Sim, pois o homem, que vive em descompasso com a tecnologia e as demandas do mundo moderno teme viver algum dia em uma ditadura digital, mas se torna aos poucos ditador de si mesmo. Neste sentido, lembremos que o mundo deseja intensamente que você se desenvolva para ser mais produtivo e rápido — mas não te dá a mínima chance de parar e respirar e contemplar. Estar atento nas sensações e ancorado no presente. Contemplando nossa pequenez neste universo imenso, respirando mesmo ar que Sócrates e Jesus respiraram, podemos desenvolver nossa consciência na mesma medida que desenvolvemos novos combustíveis computadores.

Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo. NIETZSCHE, F. Menschliches, Allzumenschliches I — Kritische Gesamtausgabe, 4ª seção, vol. 2. Berlim, 1967, p. 236. APUD Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço . Editora Vozes. Edição do Kindle.

A sociedade do desempenho é tão onipresente por que ela faz-nos crer que nós mesmos queremos isso e que isso é “melhor”. Assim nasceram a sub-cultura do coaching, das palestras motivacionais, da mentoria. O capitalismo em seu movimento onminofagico se apropriou até da tradição de mestres e discípulos para criar proto-seitas de fanáticos querendo ser melhores e mais produtivos do que eram semana passada. Mas lembremos de outra coisa que Nietzsche já disse: todo mestre tem apenas um único discípulo e está destinado a ser substituído por ele. Essa, afinal, é a vida. As pessoas esquecem muito facilmente que nesta comum tragédia dos comuns, apenas uma pequena parte da população tem a informação completa e o ambiente ideal para a transformação em algo que seria melhor — lembrando-nos sempre que é melhor em termos de desempenho. Sou a favor do jeito mineiro que come pelas beiradas para não queimar a boca.

Photo by Robin Benad on Unsplash

O cansaço de esgotamento não é um cansaço da potência positiva. Ele nos incapacita de fazer qualquer coisa. O cansaço que inspira é um cansaço da potência negativa, a saber, do não-para. Também o Sabah, que originalmente significa parar, é um dia do não-para, um dia que está livre de todo para-isso, para falar com Heidegger, de toda e qualquer cura. (…) Trata-se de um tempo intermédio. Depois de terminar sua criação, Deus chamou ao sétimo dia de sagrado. Sagrado, portanto, não é o dia do para-isso, mas o dia do não-para, um dia no qual seria possível o uso do inútil. É o dia do cansaço.

Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço . Editora Vozes. Edição do Kindle.

A Sociedade do Cansaço, enfim, é uma sociedade do esgotamento individual. O cansaço se cura com descansos e pausas, mas o esgotamento se espalha e sabota. Para nos livrarmos desta sina ele nos lembra que a sociedade que criou é a sociedade que redime. Vivemos em sociedade e podemos ser humildes para admitir nossas limitações a contar com a ajuda do outro.


Vídeo do canal do YouTube Normose para Inspiração adicional: https://www.youtube.com/watch?v=46WudVBHaxM

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