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Acertando as contas com o passado

Eu perdi meu avô para o covid-19, mas a cidade que ele tanto amou não precisa ser enterrada junto dele

Eu tinha vinte e dois anos quando saí definitivamente de Terra Nova, a cidade do interior que eu crescera. Antes disso houveram muitas idas e vindas, desde quando, aos 16, eu tentei morar com uma mulher de lá e depois seguir ela até o Rio Grande do Sul (e no malogro desse intento, negar-me a voltar e ficar na metade do caminho). Antes disso, aos 15, eu já vivera em Campo Grande por seis meses e viera até Chapada dos Guimarães aos 12 em uma excursão escolar de uma semana. Uma das melhores opções que o adolescente em Terra nova tem de conhecer as cidades vizinhas, no entanto, é praticando algum esporte e indo a torneios escolares, o que eu fiz também.

Não conhecemos nossos erros senão pelos olhos dos outros, e esse período da minha vida, entre os quinze e os dezoito foi o que mais deu errado na minha vida, pelo menos é o que eu achava. Primeiro porque ao desistir de estudar em Campo Grande eu desisti de morar em uma cidade maior e talvez estudar em boas escolas, adquirindo boa formação — que eu julgava estar apto a receber. Depois, se apaixonando perdidamente, de uma maneira quase doentia e insana, deixei de lado mesmo meus melhores amigos e minha família para me dedicar somente àquilo. E quando isso deu errado, finalmente, sobrara apenas uma versão vazia de mim, de coração quebrado, com estudos atrasados e distante de todos. Ainda vivia em uma cidade grande, um sonho, mas a que custo? Quando voltei para Terra Nova, após um encontro com minha mãe que viera dar assistência à minha vó, que sofrera um AVC, eu tinha 19 anos, e tinha de recomeçar minha vida de onde a havia abandonado, aos 16.

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Correria de cidade grande — Córdoba, Argentina — 2018

Hoje, vejo que a intensidade daqueles dias enganam a percepção, dando uma ideia de uma estrago maior na minha vida do que realmente poderia ter sido. Três a quatro anos na vida de um adolescente parecem uma eternidade, mas se olhado de perto, dadas as circunstâncias, eu não teria perdido muito se houvesse me mantido como estava, afinal aconteciam tão poucas coisas naqueles dias. Meus amigos se formaram antes, isso é fato, e eu ainda estava em Terra Nova. Ainda assim, foi a chance que tive de fazer novos amigos. Novas experiências estavam no horizonte e muito em breve eu mesmo estaria tão grande que nem a cidade nem meus pais poderiam me suportar. Aos 22, com a ajuda da minha tia, me mudei para Várzea grande, cidade colada à capital.

Assim que nós nascemos, choramos por nos vermos neste imenso palco de loucos. Shakespeare, William.

Com esse pequeno resumo, imagino, é possível que eu o convença que eu odiava minha cidade. Mas isso é um exagero. Eu cresci lá, e viver em lugares assim têm suas vantagens, tais como a simplicidade da vida, a rotina e os amplos horizontes, livres de prédios. Rios sem poluição e noites sem fumaça, e a tranquilidade de conhecer quase que cada uma das pessoas que passam na rua; o que é uma provável impertinência para o jovem, ansioso por ser livre de relações opressoras e julgamentos, mas que é o prazer daqueles que prezam pela segurança. Não que isso seja garantido, nada realmente é, e meus pais dizem que hoje não gostam nem de passar por perto da casa onde vivia meu avô, pela tristeza que lhes traz.

Não, eu gosto de meu tempo no interior, de andar de bicicleta pelas bibocas de lá — quando eu era criança eu chamava aquilo de “aventuras”. Adulto eu parei de chamar de qualquer coisa, mas nunca perdi a sensação incrível de estar a fazer parte de algo maior enquanto pedalava por lá. Nessa última vez, em 2015, eu descobri que dava para fazer circuitos de uma hora de bicicleta que passavam pelo interior, se viam os pastos, mas às vezes algumas araras. Foi nessa ocasião que pedalei até outra cidade, e passando pelos casebres tive a mesma sensação que tivera quando subi os Andes pela primeira vez, de ônibus, e vi o povo que vivia naquelas alturas em casa solitárias: “que lugar maravilhoso para viver longe do mundo!”. Que eu tenha tido a mesma sensação em lugares tão distintos fala mais sobre meu estado de espírito do que sobre as coordenadas geográficas. Viver como um eremita ou sábio chinês afastado de turbulências sempre foi uma fantasia romântica que mantive para mim.

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Eu e meu avô em seu aniversário de 80 anos

Fantasias, no entanto, não se sustentam para sempre, e mesmo retiros muito bem estruturados precisam ser deixados de lado em algum momento, mesmo que seja apenas para trazer arrependimento e desgosto… pois como o mundo ia saber de seus retrocessos senão pela advertência do sábio que viveu afastado dele? Ninguém diria que, mesmo conhecendo as consequências de sua decisão, foi tolice de Jesus sair do deserto. Da mesma maneira o sábio precisa sair e se arriscar vez ou outra dizendo ao povo que ele precisa ver mas não consegue enxergar. Em última instância, a morte é esse refúgio final onde nada mais do mundo virá a perturbar, o descanso dos justos (e dos injustos também, tamanha é a capacidade equalizadora da morte). Nesse caso, deserto e abandonado fica o mundo daqueles que ficam vivos.

A última vez que estive em Terra Nova por um bom motivo, foi para batizar minhas afilhadas, e apesar de tudo, eu não queria sair de lá muito apressadamente, pois é sempre um prazer visitar a casa onde se cresceu se você ainda tem seus pais por lá. Meu avô nos recebeu e tiramos uma foto. Ele sempre lembrava de mandar um “abraço à patroa” nas mensagens de whatsapp, e ele era sincero pois não tinha nenhum motivo para fazer isso que o respeito que possuía pela família dos outros e a própria. Antes disso estive em seu aniversário de oitenta anos, uma data tão importante que eu decidira, de antemão, a me embebedar como um gambá porque para mim ver meu avô chegar a tão nobre idade e cheio de amigos, era sim, um bom motivo de comemoração. Minha avó morrera ano passado e o Vitor um anos antes, em 2018. Eu queria celebrar aqueles que ainda estavam vivos.

A combinação álcool e Terra nova, no entanto, não funciona muito bem para mim. Parece que aquele lugar, tão conservador, às vezes tão pequeno em tamanho e ideias, me oprime e, se me mantenho calmo quando sóbrio, quando muito bêbado, tende a me fazer explodir. Nada me tira a certeza de que é ter crescido acreditando em uma mentira (que em última instância foi tramada e sustentada pelo meu pai, meu avô e minha mãe). Mentira essa que só foi derrubada porque meu pai explodiu comigo quando fiz 18 anos, gritando que ele não era meu pai.

Mesmo um favor, o de me mostrar a verdade, se feito com a intenção de machucar, pode ser igualmente traumatizante, e se antes, quando eu bebia com os amigos em terra nova, eu saia de mim, tendo amnésias alcoólicas, mas ainda de maneira inocente (não sabia ainda o quão propenso a se levar pelo álcool eu era por parte do Vitor, que morreu por causa disso), nessa ocasião, do aniversário de meu avô, eu agi, imagino, pois não me lembro, com uma pontada de crueldade contra meu pai, que faltara o aniversario de meu avô, tão importante para mim. Eu estava bêbado e na cidade que foi palco de minha ilusão por tantos anos e só poderia ter agido daquele jeito, ao que parece; isso foi em 2019. Desde então paramos de conversar.

No dia em que meu avô foi enterrado, no entanto, eu pude sentir a tristeza que se abatia sobre meu pai. Não foi difícil de ver, e eu entendi que minha tristeza de neto que perdia o avô ainda era pequena se comparada a de genro e de filhos. No enterro de meu bisavô (o pai de meu avô, o João, e que meu avô cuidara até o fim), eu era criança, e sem entender o que acontecia, corria para cima e para baixo com as outras crianças, só faltando subir no caixão ou na mesa. Adulto, no velório de meu avô, eu vi os bisnetos dele fazendo a mesma coisa, e os ciclos da vida, da tristeza e da alegria, se fechavam. Mesmo eu, sem me aproximar muito naquele momento, senti uma onda avassaladora de dor que me arrancou soluços momentâneos. Não era para ser assim, não era para ser agora. Esse é o poder de uma onda de infecções no país e em Terra Nova, e ele fora levado por essa onda. Só restava se lamentar.

No luto que vivencio agora, e que é também o luto de tantas pessoas, eu procuro ver o que se perdeu para sempre e o que ainda se mantém. Nas memórias que tenho de meu avô, o que ainda podemos nutrir e cuidar, semente que podemos plantar no coração dos outros. A vida levou em menos de três anos os homens cuja ancestralidade carrego em mim, mas não suas ideias, aquilo que representaram em vida, e nunca foi tão importante fazer essa abstração: ainda tenho meu pai verdadeiro comigo (pois, já dizia a sabedoria popular que “pai é quem cria”), e sendo ele quem é, e conhecendo-o como eu conheço,é sinal de progresso aceitar que o meme, nesse caso, é mais poderoso que o gene.

Oh, não vamos discutir necessidades! Nossos miseráveis mais miseráveis sempre têm alguma coisa que é supérflua às suas necessidades miseráveis. Se concedermos à natureza humana apenas o que lhe é essencial, a vida do homem vale tão pouco quanto a do animal. William Shakespeare. Rei Lear, cena IV

A morte de meu avô representou, para além da imensa dor da perda, a celebração de uma vida plena e aventurosa. Suas viagens para o sul encontrar os amigos e parentes, mesmo com idade avançada, dirigindo por mais de cinco mil quilômetros, me inspiram a fazer a mesma coisa, ainda que seja no país interior e desconhecido da minha alma. Seu amor pela família, pela tradição, pelos amigos e pela política (ele nunca foi candidato, mas sempre tinha suas preferências) me inspiram a viver, ao lado de minha esposa, uma vida igualmente bem aventurada . Com tão poucas representações de masculinidade dignas restando no mundo, meu pai e meu avô e um ou outro amigo são tudo aquilo que preciso. E quando falo dessa coisas estou falando mais de uma razão de ser do que de uma necessidade (que necessidade há em se preocupar com masculinidade quando vivemos o ocaso destes mesmos pressupostos de masculinidade e patriarcado nos dias de hoje?). O mesmo vale para o conservadorismo de meu avô, que acho que vale tão pouco nos dias de hoje, mas que é um direito de todos manterem se assim quiserem.

Não planejo voltar a morar em Terra Nova, enfim, mas ainda desejo que a cidade prospere, pois foi a cidade que meu avô escolheu para viver, criar seus filhos e netos — e eu só cresci lá por causa dele, um dos muitos sulistas que aceitaram o desafio de viver e se estabelecer em terra tão distantes e precárias. Que ele tenha feito alguma fortuna e que tenha vivido com moderada simplicidade apesar disso, diz mais sobre sua disciplina, treinada por longa vida, do que sobre sua genética. Ele estava imensamente feliz quando seu genro ganhou a eleição para prefeito em 2020, e mandou um áudio falando disso com uma alusão bem campestre “estamos mais felizes que égua com os filhotes do lado”.

Não acho que esse otimismo se vá perder, e o agronegócio, realmente, não tem do que reclamar. Mesmo com a pandemia houve crescimento desta área, e Terra nova, que já foi uma cidade do garimpo, aos pouco se tornou uma cidade do boi, e talvez possa mesmo ser algo mais, a depender da migração de força de trabalho, de novos empregos (única economia que ainda gera emprego é a do agronegócio, também) e da sorte.

Penso nos meus primos e amigos muito próximos, que lá estão, e lhes desejo o melhor, a mais sublime felicidade. Que transformemos os esforços de nossos antepassados (que não foram poucos) em frutos e mais trabalho, claro, consoantes com os esforços necessários à novas gerações, como a recuperação ambiental, a educação e o respeito pelo outro. As pessoas passam, mas o amor fica; foi naquela cidade que eu aprendi a ler e escrever, e não poderia ter pedido mais. Eu saí de terra nova, mas a terra nova não saiu de mim.

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