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Atravessamentos da pandemia

Um dossier

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Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.

de Andrade, Oswald. Manifesto antropófago e outros textos (Grandes Ideias). Penguin-Companhia.

A corrente pandemia de sars-cov-19 foi a primeira do tipo vivida pela minha geração e por tantas outras. Também foi o primeiro grande acontecimento do século XXI e tudo transmitido em tempo real ao redor do mundo. E isso pode ter sido tanto a novidade como o fator mais opressor que muitos brasileiros estejam sentindo nesse momento.

Afinal não é um acontecimento espetacular como a guerra do golfo — uma das primeiras guerras narradas pela televisão em tempo real; tampouco acontece em outro continente distante. A pandemia está do nosso lado, é invisível e apenas comprova como a vida é frágil — e a humanidade mais frágil ainda em relação aos seres microscópicos.

O Brasil tem passado por graves crises econômicas e políticas nos últimos anos; entre elas o impeachment, a criação e o desmantelamento da operação lava-jato e a ascensão do Bolsonaro. Junto a isso, imbricada desde os últimos cem anos estão as questões econômicas. O País tem estado em apuros econômicos, saindo de uma crise para entrar e outra há muito tempo; lembro ainda pequenino da crise da inflação, ou da dívida externa. Só se falava nisso, até que não se falou mais e se passou a falar de outra coisa.

Alguns teóricos apontam no capitalismo uma das causas do fortalecimento do Fascismo. Seria este um dos motivos porque os liberais e representantes do mercado apoiariam Bolsonaro, direta e indiretamente, contanto ele deixasse o mercado livre para agir, o presidente poderia ser qualquer um. Uma medida desesperada que trouxe outra, diriam. Junta-se a isso a tendência da política de direita de simplificar quando não extinguir o fisiologismo do Estado e temos a grande mudança política da última década. E tudo parecia estar se encaminhando, o teto9 de gastos havia sido imposto, a reforma da previdência havia sido aprovada e, embora o PIB não estivesse subindo como o esperado, as grandes vendas de estatais junto com as reformas poderiam trazer alguma luz no horizonte… até que a Pandemia aconteceu.

Assim como foi com Temer, Bolsonaro se prontificou a defender a economia e o mercado assim que soube o que estava acontecendo. Dizia que não era o caso de ficar em casa, que a doença era pouca coisa, fez tudo o que pode para impedir uma rápida retirada e esvaziamento das ruas. Isso ficou claro o tempo todo, e o argumento de que o país não pode parar, a economia não pode parar nunca ficou tão patente. Entre manobras divergentes de culpar a China pela doença ou culpar o próprio Ministro da saúde por não ficar ao lado da economia ou receitar um remédio ineficaz, o planalto mais uma vez mostrou que no fundo não sabe o que está fazendo realmente. Ainda assim o Estado nunca se mostrou mais necessário como agora, quando o SUS brilhou como exemplo de acesso universal à saúde enquanto países como os Estados Unidos não. Infelizmente, cada um destes dois países à sua maneira, alcançariam o posto mais alto no mundo em números de infecções e mortes pelo Sars-Cov-19.

Segundo dados da PNAD Covid19, 3,6 milhões de pessoas afastadas do trabalho devido ao distanciamento social entre 23/08 e 29/08/2020, e 30,1 % das pessoas ocupadas tiveram rendimento menor do que o normalmente recebido. Soma-se a isso a média móvel de 250 mortes por dia e os 4,5 milhões de infectados e temos, delineando-se, à nossa frente, uma crise sanitária e econômica sem precedentes.

O auxílio emergencial, ao que tudo indica foi um sucesso, alcançando grande maioria dos mais pobres que precisavam naquele momento crítico de algum alento. Aquilo que começou com o apelido de corona voucher, e sancionado no dia primeiro de abril de 2020 com o Projeto de Lei 9236/17, não necessariamente precisa acabar após a fase crítica do contágio no país. A discussão sobre uma renda básica para os mais pobres, ou alternativas como imposto negativo, saiu dos bastidores para alcançar o protagonismo. Teóricos de vertentes conservadoras e liberais, assim como o exemplo bem sucedido de países como a Finlândia trouxeram alento para uma constante preocupação com a desigualdade gigantesca no País e que se agravou com a Pandemia.

Para a economista Laura Carvalho, a Pandemia apontou sem medo de erro a importância que o Estado ainda possui, a despeito do que os liberais de mercado possam desejar; a sua tese é que o governo, no momento atual precisa atuar em direção contrária ao movimento econômico recessivo causado pela Pandemia, e, ao invés de cortar gastos, gastar mais, de modo a criar empregos e ensejar investimentos. Com isso o ciclo econômico se atenuaria e haveria uma estabilidade generalizada na economia — estabilidade que agrada investidores externos. Além disso, ela sugere que outros papeis do estado emergiram com a crise: o estado como provedor de proteção social, como investidor, como prestador de serviços e como empreendedor. Se isso vai realmente se realizar — e o estado será competente em mitigar os efeitos danosos da Pandemia à economia e à nação como um todo, ainda é cedo para dizer.

A exemplo do que foi dito antes, política e economia andam de mãos dadas, quer queriam quer não, como ficou demonstrado com a súbita melhoria de Bolsonaro nas pesquisas de opinião — o índice de aprovação subiu a novos patamares mesmo com críticas sobre sua atuação durante a eclosão da pandemia exclusivamente voltada à questão econômica; estudiosos do aspecto social envolvendo os mais pobres, no entanto, explicaram isso como consequência natural do auxilio emergencial — que supera qualquer questão ideológica que possa haver entre eles. Quem tem fome tem pressa, já dizia o velho slogan.

Os primeiros meses de crise foram também caracterizados por uma grande paralização no país, o que ficou conhecido como “distanciamento social”, apregoado por especialistas como a melhor maneira de “achatar a curva”, uma metáfora para conter o espalhamento imediato do vírus de modo a não lotar hospitais causando colapso do sistema.

Muito se comenta, ainda, sobre o respeito das pessoas a tal isolamento. Os “ficais de quarentena” surgiram de todo lado apontando quem estava ou não respeitando essas recomendações. Um biólogo especialista em vírus, Átila Iamarino, que já tinha um sólido trabalho educativo no youtube ganhou notoriedade na “tuitosfera” e na internet como um todo como o maior defensor do isolamento — o que, naturalmente, gerou ressentimentos. Todo mundo sabe como a ruptura com o cotidiano de passeios e encontros é difícil.

À parte disso, as favelas e comunidades mais precárias começaram a interessar os meios de comunicação pela sua evidente vulnerabilidade ao vírus. Ficaram conhecidas as diversas maneiras como se organizaram as comunidades para enfrentar a Pandemia — inclusive aquela em que traficantes impunham toque de recolher. Fato é que a pandemia acabou em meados de julho para os mais ricos e desde então se alastrou como fogo no cerrado apenas nas camadas mais pobres. Somado a isso o aumento de preço de alimentos básicos itens de construção indicam que a recuperação do país deve ser bem mais lenta entre estas camadas.

O que indica um despreparo do governo para enfrentar a situação — sua medida de cortar o imposto do arroz importado foi emergencial e só trará benefícios em alguns meses. Não que a culpa seja só deste governo — a questão do saneamento básico nunca foi tão evidente e o descaso dos governos com essa questão é tão pior quanto saber que o distanciamento social só funciona quando se possui água encanada em casa e um ou dois cômodos para isolar pessoas com sintomas da doença.

A crise propiciada pelo isolamento físico e social, principalmente no auge das infecções, propiciou momentos de pristina solidariedade entre as pessoas, como apontam algumas reportagens ao redor do mundo: um homem que toca violino para seus vizinho da sacada, uma mulher que canta ópera para alentar as pessoas isoladas ao seu redor, jovens que se oferecem para fazer compras para seus vizinhos de idade ou que espalham cartazes oferecendo esse tipo de ajuda.

No Brasil a perda de pessoas tem sido sentida com agudo sentimento de impotência e raiva; o home office, modalidade de teletrabalho, para alguns imposto à força e sem preparo (o que vai de encontro à razão de ser do teletrabalho) e para a maioria fora de alcance, é apenas mais uma faceta da tremenda desigualdade do país; o mesmo vale para os estudantes de escolas públicas que não bastando concorrer com estudantes de escolas particulares, com mais recursos e professores mais bem pagos, ficaram estagnados por não poderem ter aulas à distância. O estado de bem estar social, por mais precário que seja no país, só pode se deixar entrever pelas iniciativas privadas como a Globonews liberando seu sinal, ou as librarias distribuindo livros grátis etc. é significante, mas não parece suficiente, o que gera um ressentimento geral, seja com os políticos, seja uns com os outros. O timing das manifestações na rua foi perdido também por causa da pandemia e mesmo as votações de outubro estão sob constante reavaliação.

O isolamento social, ou quarentena, como medida sanitária, é uma medida criada na era medieval, e como tal, pode parecer arcaica em relação ao que os avanços tecnológicos do século XXI oferecem. Ainda assim era isso ou nada, uma vez que a pandemia alcançou um Brasil completamente despreparado, sem capacidade de testes ou de controle do vaivém das pessoas em áreas ou situação de risco; não seria justo, no entanto, dizer que será sempre assim. Aos poucos se vê que mudaram os arranjos políticos e econômicos (seja para o bem ou para o mal) assim como os arranjos afetivos e culturais.

Em relação a estes últimos, pode-se perceber que os carros como modo de transporte individual aumentaram — que pode possuir um carro têm um controle maior de suas idas e vindas, assim como de sua capacidade de se manter protegido em seus deslocamentos. Muitos empresários que tentaram defender o fim do isolamento foram execrados na esfera pública, como o dono da rede de restaurantes Madero ou o Roberto Justus — ainda assim poucas pessoas realmente respeitaram o isolamento no país — e que nunca foi de fato isolamento completo. Isso indica que ou o brasileiro é hipócrita ou que ele sabe diferenciar entre lucros privados e danos sociais, e tudo indica ser o último o verdadeiro. Isso porque as queimadas deste ano, a destruição ambiental e a piora significante da qualidade de vida, ficaram entre as maiores reclamações dos brasileiros, eclipsando até mesmo as vozes que reclamam da economia ou da política (embora, em última instância, seja tudo parte de um mesmo problema).

Essa mudança indica uma cultura de conservadorismo ambiental imbuída no povo que não tem sido muito discutida. Indica uma consciência ambiental e de nossas riquezas que ultrapassa ideologias econômicas ou políticas, e que se alinha com o modo e como o mundo vêm definindo suas políticas nos últimos anos, ainda que estejamos sendo prejudicados dos dois lado da questão — com o presidente alegando que não há utilidade em reservas florestais inexploradas de um lado e as ameaças de sanções e cancelamento do acordo UE/Mercosul do outro. Aparentemente a mera cultura política não é suficiente para mudar isso e a pandemia pode ter sido o catalisador de uma mudança de cultura maior na questão do meio ambiente. Isso porque é sabido que vírus como o SARS-COV-19 só surgem porque há uma invasão do meio ambiente — e também que o surgimento de outros vírus semelhantes irá inevitavelmente atacar a humanidade mais cedo ou mais tarde.

“If you don’t like bacteria, you’re on the wrong planet.” Stewart Brand

Tudo indica que enquanto não houver uma vacina teremos de conviver com a pandemia. Com quase um milhão de mortes no mundo todo (960 mil enquanto este dossiê é escrito), e alegações de sequelas em alguns pacientes que se curam, é mais do que patente que não se trata de uma mera gripezinha. O assim chamado “novo normal” indica que teremos de aprender a conviver com o risco de infecção mais cedo ou mais tarde, e que as atividades essenciais da sociedade deverão se adaptar, assim como os indivíduos.

É difícil fazer alegações sobre fatos enquanto ocorrem, e mesmo análises conjunturais sobre o contemporâneo tendem a ser enviesadas porque o excesso de informações do mundo moderno não substitui a sabedoria que não se deixa levar pelos acontecimentos efêmeros. Também, com três quartos de século do fim da segunda guerra mundial, com a internet e o uso massivo das redes sociais para fazer política apontam que estamos entrando em um mundo completamente novo e que as ferramentas antigas para resolver problemas não servem mais. Na presente análise dos atravessamentos que a pandemia teve em nossas vidas ficarão faltando (em parte por falta de habilidade minha, em parte por falta de espaço) certamente análises sobre o mundo do trabalho e as crises pela qual o mercado passava.

Uma comunidade esquerdista na internet rapidamente aproveitou a crise para alegar que o fim do capitalismo desta vez haveria de chegar; talvez tenham se apressado nas conclusões, ainda que, sem dúvida, alguma coisa de fato tenha acertado o coração do mundo moderno. Diferente de uma guerra, no entanto, a doença causada por vírus minúsculos traz à humanidade uma lição de humildade, e aos brasileiros uma lição mais sutil ainda, posto que a hubris tem se mostrado uma característica central dos políticos brasileiros que o povo escolheu para si.

A humanidade não está destruindo o planeta, mas destruindo a si mesma; o extermínio em massa de espécies nativas e irrecuperáveis apenas pelo expansionismo e dominação criará um débito com as próximas gerações que jamais será pago. A crise atual demonstra também que mesmo que o homem consiga ir até a lua apenas para se mostrar, ainda tem que lidar com doenças para a qual o revólver ou a pistola não são solução.

Se há alguma esperança palpável nas transformações da sociedade talvez seja justamente a de que não há caminho ou clichê a se apegar — que estamos todos precisando de olhos novos para uma situação única — e que isso é o nascimento de uma nova sociedade em um novo mundo. Que nada do que fizermos será perdido senão transformado. Da mesma maneira com que as baterias transformam matéria decadente em vida, e da mesma maneira como a sociedade transformou a ânsia estatizante do governo em auxílio emergencial, impedindo assim um avanço sorrateiro do neoliberalismo. Na mandala do contemporâneo nada nunca se perde e tudo está em constante transformação — inclusive a economia, donde se descobrirá, mais cedo ou mais tarde que árvores valem mais de pé do que deitadas, e que o progresso pode se fazer de maneiras nunca tentadas antes. Referências

Este texto é baseado em um trabalho de conclusão de disciplina. Embora esteja noventa nove por cento semelhante ao submetido à aprovação da Professora, não possui algumas figuras e está fora das normas abnt. Muitos outros textos excelente foram compostos, em conjunto, para esta disciplina e podem ser acessados no blog https://disciplinametodosufmt.blogspot.com/.

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