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A partir de certa idade, muitos homens desenvolvem autismo de testosterona, que se manifesta lentamente como uma deficiência de inteligência social e da habilidade de comunicação interpessoal que compromete a formulação de ideias.

Tokarczuk, Olga. Sobre os ossos dos mortos. Todavia.

Quando eu era moleque, no interior, eu tinha os mais diversos interesses. Entre eles música clássica, selos e computadores. Com o tempo estes interesses se desfizeram, ou foram desfeitos, e restou apenas a lembrança da busca difícil de satisfazer estes mesmos interesses.

Infância, dizem sempre, é um mundo mágico onde todas as coisas são interessantes e igualmente maravilhosas. Uma chuva e uma poça de água podem se transformar rapidamente em um lago ou represa — que com uma aplicação de uma vareta pode se transformar em um estrondoso estouro de barragem, criando um rio que desce até outro vale, que por acaso é também a valeta causada pela chuva.

O que não se diz é quão presa de nossos sentimentos e desejos, propaganda e marketing nós crianças também somos. A força de nossa existência — a avassaladora e única capacidade de ver e absorver o mundo como uma esponja — é obstruída pelo intenso e misterioso desejo que nunca se cumpre. Assim vivemos, precariamente, divertindo-se com o que tem, desejando aquilo que não tem. E à medida que adquirimos, mais desejamos, tal é a dinâmica do desejo, que não encontra no objeto conquistado realização, mas que se transforma em outro desejo, mais intenso, mais profundo e mais sofisticado.

Tenho razões para acreditar, no entanto, que se esse fato é inerente a todos os humanos, a alguns ele atinge com mais agudeza do que outros — o que explica a importância do ambiente na formação de uma pessoa tanto quanto sua hereditariedade. Ser uma criança de pais batalhadores, no interior, é uma camada a mais desta precariedade citada. Porque no interior não apenas as coisas são mais caras, algumas coisas simplesmente não se acham. Aquilo que já aconteceu com intensidade de pico na capital ou nas cidades maiores, chega como uma marolinha aos pés dos caipiras muitos meses depois. Isso pode ser bem frustrante para adolescentes que vêm na tv e nos jornais tudo aquilo que acontece, e também o é para as crianças, que em tudo copiam os mais velhos.

Reunião para jogar RPG na UFMT, pouco antes da pandemia estourar

Isso pode explicar porque eu fantasiava tanto a vida adulta quando era criança; eu não tive uma infância ruim, mas certamente me entediava às vezes. E ela passou muito mais rápido do que esperado e menos do que o desejado: os meus jogos quando criança eram muito mais sérios que os meus jogos de adulto e é nessa perspectiva que eu tento entender, afinal, que tipo de adulto eu me tornei. Porque se eu falo tanto contra o sistema capitalista, decerto eu tenho que admitir que não era assim que eu pensava quando era criança; claro, eu não entendia os problemas inerentes do sistema mas sabia o que era não ter acesso à bens de consumo, e posso resumir o meu crescimento destes anos todos na busca ao acesso destes mesmos bens.

(…) a lembrança é pragmática, é insidiosa e astuta, mas não de forma inamistosa ou maligna; pelo contrário, ela faz de tudo para agradar o próprio anfitrião.

Knausgård, Karl Ove. A ilha da infância (Minha luta). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Não é sem algum tom de hipocrisia que se atinge maturidade, temo concluir. Isso porque se hoje eu me horrorizo à vista de um ancap ou de um neoliberal, eu também não me vejo capaz de dialogar a fundo com alguém que queira extirpar da sociedade o alcance a qualquer bem de consumo capaz de tornar a vida mais significativa — e nesse caso me refiro a discos, livros e roupas, mas além disso, à liberdade de preferir isso à outra coisa qualquer, como por exemplo, mais hospitais ou mais escolas. Entenda, eu não digo que isso não seja egoísmo, porque é, e é baseado em um falso senso de liberdade que o capitalismo inocula nas pessoas desde muito cedo. Quando digo estas coisas eu digo do ponto de vista de quem nunca experimentou outra coisa além disso, isto é, cresceu acreditando que esse era o único modo de vida possível.

Valentina & Júlia (Réveillon 2020)

Isso porque o sistema sob o qual vivemos não tem solução e parece ser definitivo, mas não é uma lei do universo, e está sim fadado, como todas as coisas, a se transformar, ainda que lentamente, em outra coisa. Talvez já esteja mesmo em seu último estágio, mas não é minha intenção plantar sementes de utopia aqui, porque eu sei que nenhuma revolução acontece sem derrubada, conflito e morte. Quero apenas tornar patente o desenvolvimento deste mesmo que vos escreve, que um dia sonhava em ter aquilo que hoje tem, e que um dia soube inventar mundos e músicas inteiras dentro da cabeça somente porque estava sem acesso ao cd novo do legião urbana ou ao livro novo do Steve Jackson. O consumismo, eu concluo, só começa quando a imaginação e a boa vontade acabam.

Quem de nós não quer o melhor para nossos filhos e aqueles que virão? Isso porque sabemos no nosso íntimo que não tem cura esse desejo imbricado em nosso ser e que nos consome até o fim das nossas vidas; só podemos abraçar o processo e aceitar que temos a responsabilidade de aliviar a barra (um pouquinho que seja) para nosso próximo. O mundo da voltas e não estamos tanto no controle assim como também não estamos tanto à mercê do destino. Ontem eu queria ficar isolado em retiro espiritual e longe do mundo, hoje eu sou obrigado a ficar em retiro e luto para ser notado pelo mundo.

Das histórias que costumo contar a mim mesmo (e não são poucas) a história da rejeição é sempre a que mais está em alta, porém, refletindo um pouco, essa dor se baseia na percepção de que eu queria muito aquilo que me rejeitou, e que eu perdi algo que era inestimável, o que se subverte a partir do momento em que penso que aquela coisa que me rejeitou, se houvesse sido alcançada, iria me decepcionar — e que eu tive a sorte, no fim das contas, de ser poupado desta dor. Talvez até ensejara isso, sem saber.

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