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Contornando a floresta negra da web

Como um convite para participar de um projeto ecológico trouxe uma nova perspectiva para minha presença digital

foto minha Cuiabá, viaduto na avenida perimetral

Quando comecei a escrever aqui nesse blog, eu não sabia exatamente qual seria o resultado, mas apenas a intenção, o que se não é suficiente para se alcançar a maioria das coisas deste mundo, era mais do que o mínimo para aquele que tem afinidade e particular talento. E eu já mantivera um blog no blogspot por cerca de nove anos. Motivado que eu estava, com tempo em excesso, eu apenas queria deixar em aberto, no melhor espírito open source e de ciência feitas por pares, minhas aprendizagens, minhas heurísticas e estudos.

A intenção, adianto, era de retribuição e nada mais. Eu me sentia grato por ter algumas oportunidades que sei,eram esperadas há muito tempo, como a de voltar a fazer faculdade, de possuir um computador e a paciência para estudar. Eu me sentia nessa obrigação de transformar minhas bênçãos em frutos para os outros. Ainda penso isso, mas na hiperatividade e no redemoinho de informações que se transformou a internet, falta-me muitas vezes a disposição necessária (hoje mais do que nunca, em meio a uma pandemia e mortandade que atravessa qualquer alegria criativa que possa haver para se sentar e escrever). E não é coisa simples de resolver, porque nisso entram questionamentos sobre o meio utilizado, se as pessoas estão mesmo dispostas a ler (ainda mais ler em telas), se eu ainda estou em sintonia com o tema relevante, etc.

A intenção se perdeu na possibilidade e o corpo se perdeu na rotina. Minha pós graduação se perdeu na origem, e o país se perdeu da democracia. Nada me parece por acaso, e quando lembro de minha pergunta ao i ching (oráculo chinês, que estudei sozinho por muito tempo) sobre “escrever para os outros”, “o que eu poderia esperar” ele apenas me disse: silêncio. E de fato, houve silêncio, não da minha parte, eu queria começar a página, escrever com frequência e melhorar minhas habilidade comunicativas ao mesmo tempo que retribuía para os outros aquilo que eu achava que poderia doar. O silêncio, eu descobri, vinha do outro lado. Não haveria retorno, comunicação, feedback ou lapso retroativo do público, dos leitores, enfim, da internet. Uma gota de ideia (muito menos que isso talvez) no oceano de informação, e que mais eu poderia esperar? Nada, e aceitei apesar de ser duro, muitas vezes não saber se estava acertando ou errando (uma pequena exceção neste sentido foram alguns amigos e minha esposa que me deram dicas sobre o que leram, e agradeço a eles de coração: William-meu-malvado-favorito, Cristian-meu-revolucionário-stalinista, Victor que também escreveu aqui e Fatima, claro).

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Isso tudo porque, agora entendo, a intenção é que precisava ser preservada, não o ego. Desse modo, eu me dediquei a falar de coisas que me eram caras, como livros e leituras, sentimentos e ideias, e trazendo renovado interesse na área que me formei em 2016, que foi filosofia — desafiando, por fim, a ideia de que esse diploma não servia para nada até o limite do absurdo. O meio, enfim, era apenas o textual, escrever é ainda o meio de comunicação principal do qual os outros emergem, e não o contrário. Um linguista certamente iria dizer que estou errado, mas fato é que não aprendo tanto com o som e a fala do que com a escrita. E nesse mesmo sentido, a responsabilidade pelo que se escreve fica mais evidente porque “Verba volant, scripta manent”, ou seja, a palavra voa, mas a escrita permanece. Os podcasts, por exemplo, que se multiplicam a uma velocidade estonteante, hoje são meios extremamente fugazes e difíceis de indexar, e portanto de capitalizar para os motores de busca da internet. Dependem de tags, de etiquetas que indiquem seu conteúdo e ainda assim nada supõe que a fala se guiará por aquilo que dizem as tags e as descrições: a fala é livre e anda pelo lado que quiser e como quiser. E isso é o mais incrível e sedutor nesse mundo, motivo pelo qual ouço tantos todos os dias.

Isso não é um anúncio de que eu também vou fazer um podcast, senão de que vou me esforçar para manter contato e criar novas formas de me comunicar. Uma delas foi uma ideia de um amigo meu, o Philip Davies, que era de transformar meus textos em áudio, ressignificando o conteúdo através de uma adaptação do formato. Assim, eu traria mais acessibilidade para aqueles que não podem ou não querem ficar lendo em telas, ou que estão com pressa. Eu mesmo desanimo com frequência na hora de ler os artigos que me interessam pura e simplesmente porque preciso ficar na tela do computador mais uns minutos do que o necessário. O áudio também traz entonação para aqueles que tem dificuldade de interpretação, e outros expedientes próprios do formato como sons de introdução e de suspense, música de fundo e música de primeiro plano, etc. Eu já fiz o teste com um de meus textos e exceto pela falta de habilidade com o software e o equipamento de captação, saiu como imaginei que sairia.

Eventualmente, para contornar esse vale silencioso da internet outras formas de comunicação poderiam ser desenhadas. Talvez um servidor do discord, talvez um grupo do telegram. Nada é certo nesse sentido, e ainda tenho que ver se há possibilidade orgânica de divisão de trabalho levando em consideração minhas outras obrigações. O áudio ao vivo, em salas de bate papo como o canal de voz do discord, do clubhouse e do telegram, parece ser uma tendência, mas isso nada tem a ver com a minha proposta de “Scriptam Manet”. Também, não se anulam, o que já é suficiente para mim. Eu sei que é preciso se reinventar, e que mesmo que não hajam necessidades materiais prementes, nem só de pão vive o homem, e se a realização espiritual está no alto da pirâmide do Maslow, não é por nada.

Eu fui convidado para conhecer e quem sabe entrar em uma sociedade e comprar uma terra no interior do estado; a ideia era que com a mesma verve ecológica todos pudessem trabalhar e construir algo juntos. Nada poderia me empolgar mais, e fiquei a pensar muito e profundamente no assunto, já que era um investimento de dinheiro, de emoção, de trabalho físico mesmo, já que nada estava pronto. E, considerando tudo, vejo que não poderei aceitar. Não apenas porque eu sou um individualista empedernido e não quero dividir minha terra com ninguém. Também não é porque eu estou preso em uma pandemia que me impede de fazer quaisquer compromissos e planos mais ambiciosos ou complexos. É porque eu não posso conceber um resultado final deste plano onde eu não acabe me tornando aquilo que busquei minha vida toda se afastar. Isso porque, vivendo a muito custo em uma cidade maior e mais diversa do que a que cresci, com seus próprios desafios e idiossincrasias, eu aprendi a esperar de mim e do meu ambiente uma coisa que não se consegue em um ambiente rural e idílico como o que se pretende um sítio. É a transformação constante e a proximidade das pessoas que me interessa, em combinação, mas não necessariamente nessa ordem.

Claro, esta ideia é boa demais para ser abandonada. E me ocorreu que ecologia não é apenas um conceito da biologia e das ciências naturais, mas um estado de espírito. Ora, o quisquiliae é já meu sítio auto sustentável, e a internet meu estado de natureza. Os meus amigos das redes sociais são meus vizinhos dessa ecovila, e é conversando com eles todos os dias que me esclareço e aprendo; e embora muitos destes registros estejam perdidos eu sei que de uma maneira ou de outra eles se manifestam em mim e emergem como nova propriedade em meus textos. Ora, tem maior clichê masculino do que “ter um sítio onde possa cuidar das minhas coisas em paz”? Se é um clichê pode ter um fundo de verdade, e é nesse fundo de verdade que me amparo. Nem sitiante, nem fazendeiro, o meu rincão vai ser mais mediano, ou pelo menos assim espero.

A comunidade que almejo criar, caso não me convidem para entrar antes, será a de amigos — estudantes, escritores, leitores, próximos ou distantes, conectados pela internet mas também pela crença na melhoria do mundo através da cultura, do estudo, e da honesta porém difícil lapidação do espírito. Isso não é forçosamente uma negação da natureza, senão a sua afirmação mais profunda: onde eu estiver a natureza de que faço parte também estará. Existe estoicismo o suficiente em conviver ao lado de vizinhos que te odeiam, não é apenas ter que sair cinco da manhã para roçar. Existe nobreza o suficiente em contemplar o trabalho de escrita que um bom livro traz, não é só no nascer do sol com os pássaros cantando que o encontramos. Comunidades virtuais podem ser tão transformadoras quanto comunidades de tijolos e adobe — e têm a vantagem de coibir o abuso físico até um certo ponto.

Claro, uma coisa não se opõe a outra, e levando até o fim do raciocínio, uma coisa pode e deve convergir em outra. No fim das contas, não se trata apenas de nós, individualmente, e sim de nós como algo maior, não apenas in loco , mas em tempo, através das gerações. A internet é ainda tão nova que sequer sabemos se ela vai dar certo mesmo. Herzog, em um excelente documentário chamado Lo and Behold, trouxe a possibilidade de que explosões solares um dia nos deixem sem isso — e também de que algumas pessoas estão tão viciadas que acabam precisando de ajuda para se desintoxicar. Ainda assim, é ela quem se tornou protagonista para a imensa maioria da humanidade em tempos de isolamento. Para a minha geração, no entanto, ela já era isso muito tempo antes. Para além das mega corporações que nos vigiam, da floresta negra que ela se tornou, das contagens de likes e de retuítes, das sub-celebridades e do pack de pezinhos, a internet é um lugar onde o conhecimento é livre, e onde as pessoas podem se encontrar, também livres de empecilhos físicos e sociais. Graças a ela, ninguém mais tem desculpa para não aprender uma coisa, para não exercer a nobre arte de ser curioso. E é com ela que pretendo ficar, como aríete das mudanças do mundo, por outro mundo, melhor e mais justo.

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