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Da Autenticidade

Ou de como descobri o trabalho acadêmico perfeito ao mesmo tempo que percebi que nunca, nunca, vou ser um conservador

Estou lendo um livro sobre Cortázar chamado “O Escorpião Encalacrado”, de um estudioso chamado Davi Arrigucci Jr. É um livro de teoria literária, robusto e abrangente, que se debruça sobre a origem e desenvolvimento da poética do escritor, a que ele denominou poética da destruição. Ainda não acabei, mas até onde li, é maravilhoso. Não apenas pelo assunto, cuja falhas minhas de compreensão eu descobri aqui mesmo quando tentei escrever sobre meu entendimento e fruição na leitura da obra “O jogo de amarelinha”. Decidido não apenas a reler esta obra, quis antes me preparar com um estudioso do assunto, mas qual foi minha surpresa ao descobrir a profundidade e beleza com que o autor desta,Arrigucci Jr., trata do assunto, nos entregando ele mesmo uma bela obra sobre a beleza das obras de Cortázar.

De certa forma a leitura deste livro, além de me dar uma dimensão aprofundada do grande autor argentino, estabeleceu uma nova métrica sobre livros acadêmicos, e provavelmente é em relação a ele que vou comparar quase tudo que cair nas minhas mãos a partir de agora. Não apenas pelo uso sábio de imagens (poucas, mas impactantes), não apenas pelo respeito com as citações (sempre no idioma original), mas pela originalidade da perspectiva, na ampla base de pesquisa do autor, na articulação profunda que possui com os temas tratados, além da habilidade com que cria panoramas históricos e estabelece relações. É daquele tipo de livro que você quer sublinhar cada frase e do qual não se afasta sem ter aprendido algo novo.

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O Jogo de Amarelinha — Cortázar, Julio. A frase em destaque é a inspiração para o título do livro do Davi

Uma das coisas que anotei aqui, que ele analisa no segundo capítulo é a genealogia da rebeldia no autor, o que ele vai chamar de “linhagem da rebelião” e escola da “crítica da linguagem”. Isso porque o contexto no qual ele surge, do pós-guerra, da escola surrealista, é o contexto onde todos os intelectuais se esforçam para pôr abaixo toda estrutura que permitiu que uma coisa como a segunda guerra, por exemplo, pudesse acontecer. Saindo do pré-romantismo e indo pelo romantismo, simbolismo e dadaísmo até chegar no surrealismo e na crítica que mesmo Cortázar vai ter com relação ao movimento que mais o entusiasmou, o autor nos dá um panorama dos movimentos artísticos pós guerra ao mesmo tempo que aponta na obra do Cortázar os lugares onde estão os nós desta rede, onde se intersecciona aquilo que lhe é próprio, aquilo que ele aprendeu e aquilo que ele ainda vai ser. O próximo capítulo trata justamente desta parte ainda não explorada, donde Borges e Cortázar se encontram (e também onde se separam). Mal posso esperar.

A crítica da linguagem, assim como a crítica da sociedade, se encontra no coração de toda transformação — a destruição, nesse caso, é um meio de criar algo novo, e é nesse mesmo sentido que uso, sempre que necessário, a chave de interpretação dos conservadores, tal como li certa vez (aqui no medium mesmo, mas ainda preciso achar esse texto): os conservadores querem que tudo mude para que tudo permaneça como está. Certo ou errado, compreendo isso dentro da volta dialética que implica no retorno de uma coisa após uma volta porém com novo frescor — o tempo, a história, a consciência, seja lá o que for, criou a distância e a impressão de novidade — mas ainda é o mesmo. Igual, porém diferente. É um paradoxo, de certa forma, o que implica em um salto de fé, e não por coincidência, religiosos em geral são conservadores (muito embora nem todo conservador seja religioso).

escorpiao26

2020 quase me transformou em um conservador. Ou isso ou se tratava de um pesadelo do tipo em que estamos pelados no meio de uma festa — porque essa coisa de ficar em casa e não sair para nada (na medida do possível, sempre, e no meu caso foi possível sempre), essa coisa de só se comunicar pela internet (o corpo físico ausente do mundo, a corporalidade se reduzindo a reticências no chat avisando que eu estou digitando), de ver o mundo através de uma tela, de agir no mundo através de linhas de código, isso tudo é sim o sonho do conservador, ao menos do suposto cenário conservador em que eu me encaixaria, o que justificaria sim uma virada ideológica na minha vida, não fosse o motor desta transformação a doença, a morte, a catástrofe nacional. Fosse o isolamento da quarentena aquilo que ela se propõe em seu sentido restrito, as seis semanas de isolamento, muito provavelmente isso haveria de ter ocorrido, isso porque, imagino, o susto seria maior, não haveria a anestesia do cotidiano (pois mesmo um cotidiano terrível onde não se pode sair de casa ainda é um cotidiano) e, assim como o medo de derrubar café nos acorda mais do que tomar o café em si, eu certamente acordaria do meu sonho inusitado para a realidade do conservadorismo.

E isso em si não seria ruim, quem sabe realmente o que nos aguarda daqui para frente? Sei que não posso viver longe de contato com a natureza, e se meu quintal e minha janela para o nascente foram tudo o que vi nos últimos meses, é o pedaço de céu mais lindo e o quintal mais estupendo que já conheci na minha vida. Não abraço paradoxos, eu sigo pela estrada que sempre segui, ou que acho que sigo (a estrada não aparece muito além de uns metros na minha frente) e procuro ser humilde o suficiente para continuar aprendendo, mas não o suficiente para me redimir de verdade. 2020 foi um ano de muitos pecados, e nada faz supor que este seja diferente; eu quero continuar colaborando com o quisquilae, ao mesmo tempo que passo meu tempo lendo ou escrevendo — não porque eu quero ser melhor, mas porque eu não concebo nada melhor para fazer.

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