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Photo by Jaredd Craig on Unsplash

Eu não leio tanto quanto gostaria. Isso é um fato. E como disse Mark Fisher, ninguém consegue. Não porque seja impossível, mas porque a sociedade, a necessidade de sobreviver através do trabalho e da luta diária pelo bem estar próprio e dos próximos ocupa todo o nosso tempo. Ele emenda que se alguém quer mesmo ler todos os livros que deseja o único meio que ele prevê é preso, — onde o governo cuida de suas necessidades para você.

Incendiária, esta frase me pegou desprevenido. Porque não é de agora, mas já venho planejando ler meus livros todos já há algum tempo — tempo demais até. E, à medida que me aprofundo no conhecimento das coisas, mais necessidade tenho de me debruçar neste mundo das letras e decifrar seus significados com cuidado e tranquilidade. O que me move, entre outras coisas, é saber que a vida é incrível e comporta esta possibilidade de viver aventuras e outras vidas incríveis através da leitura.

Outro fato é que se não leio tantos livros quanto queria, sinto por mais paradoxalmente que possa parecer que isso acontece principalmente por causa da internet e de todas as outras leituras que não sejam através dos livros. Mesmo no Twitter temos agora mensagens encadeadas que são bastante compridas bem como o famigerado “textão do facebook. Agora, não quero fazer mea culpa, acho que existe tempo para tudo, inclusive para meus livros, apenas sei que não me ajustei o suficiente para um mundo onde temos séries televisivas sendo lançadas com regularidade e tão facilmente acessíveis.

Eu sou de uma época em que mesmo para conseguir um CD pirata do Legião Urbana havia muito trabalho e espera; a internet não era nem atrativa nem prática para uso cotidiano, e ter acesso a toda este acervo que temos hoje era apenas um sonho. Com o computador pessoal dado de presente para mim apenas aos vinte anos, eu passei muito tempo esperando para ser o dono de minhas escolhas, tanto de aprendizagem e entretenimento. E hoje não posso evitar pensar em tudo o que perdi para ter o que tenho.

A partir de uma metáfora identificadora básica, a sociedade desenvolve uma cadeia de metáforas. O mundo como livro se relaciona com a vida como viagem, e desse modo o leitor é visto como um viajante, avançando através das páginas desse livro.

O leitor como metáfora (Manguel, Alberto)

Não à toa, precisei criar um ambiente de leitura livre de internet aqui em casa usando o método pomodoro. Muitas vezes vi que é somente a uma notificação silenciada de distância que fica um mundo de leituras no conforto do meu quarto; mas não só isso. Este blog mesmo foi criado com a intenção de manter ativa uma comunicação direta com os outros sobre minhas leituras e pensamentos cotidianos, criando um feedback entre o que eu aprendo e o que apreendo do que li. Eu já havia desistido de escrever em 2015 após manter um blog por nove anos quando me separei e saí da cidade e passei uma temporada no interior. Voltei a escrever após conhecer mais profundamente Montaigne e seus Ensaios.

Esperando a abdução acontecer (Argentina, Capilla del Monte, 2018

No mundo atual ninguém tem real capacidade de leitura porque estamos saturados de informação e não sabemos mais como lidar com isso — e isto é também, possivelmente, um projeto não declarado do governo para manter as pessoas no cabresto, trabalhando até morrerem, enriquecendo algumas dezenas de pessoas ao redor do mundo. Que chance podemos ter, nós que nascemos com a cor de pele e código postal errado? Parto do exemplo pessoal: eu estou neste projeto de estudo e leitura intensiva há pelo menos dois anos, com uma intensidade maior desde que o Vitor morreu, e não vejo o fim destas leituras chegando, nem mesmo de longe; o projeto pessoal de liberdade e conhecimento é ofuscado rapidamente pela simples necessidade de sobreviver e não ser um fardo aos outros; é impossível fazer como faziam e somente se trancar e estudar absolutamente tudo e depois sair por aí ganhando a vida charmosamente como crítico teatral ou colunista; não, o mundo mudou, e mudou rápido. Hoje não sabemos nem se teremos abelhas em vinte anos, aposentadoria ou empregos. Estudar se tornou irrisório por que subentende alguém adquirir conhecimento centralizador — um conhecimento sobre si mesmo e que é absolutamente desnecessário para o resto do mundo.

Mas, se somos animais gregários que devem seguir os ditames da sociedade, não deixamos de ser indivíduos que aprendemos sobre o mundo ao reimaginá-lo, ao juntar palavras a ele, ao reencenar nossa experiência por meio dessas palavras. No fim, pode ser mais interessante e mais esclarecedor nos concentrarmos naquilo que não muda em nosso ofício, naquilo que define radicalmente o ato de ler, no vocabulário que usamos para tentar entender, como seres autoconscientes, essa habilidade única nascida da necessidade de sobreviver por meio da imaginação e da esperança.

O leitor como metáfora (Manguel, Alberto)

Li um livro sobre leitura recentemente, e com ele uma renovada alegria pelo ato de ler igual àquela que surge de encontrar uma pessoa carregando um livro com uma capa denunciando que vocês seriam amigos; é como a alegria de ir à uma biblioteca e encontrar tantas pessoas fazendo aquilo que você faz, o silencioso e concentrado ato de desvendar palavras adormecidas e trazê-las para dentro de si (longa vida às bibliotecas, aliás). É a alegria de compartilhar discussões e visões alternadas e complementares de uma mesma narrativa, sempre com vigor e entusiasmo Neste caso uma meta narrativa uma vez que Manguel traça um breve panorama do leitor e do ato de ler, usando de metáforas e analisando-as uma a uma. Recomendo muito. Ler é uma das coisas mais difíceis que nosso cérebro consegue fazer e deveríamos honrar este tremendo esforço. Talvez não lendo todos os livros que achamos que devemos ler, mas, usando um pouco de imprecisão e licença poética, lendo tudo o que pudermos ler. Sem preconceitos, sem esnobismo; ler para viver e viver para ler. Deixar a precisão para depois, para nunca talvez. Como o filósofo ensina, respeitar seu tempo e seus ritmos e não ter medo de ser ultrapassado só porque não corresponde-mos à escala industrial com que o mundo mede as coisas. Pois, como disse Manguel, “O livro é um mundo através do qual podemos viajar porque o mundo é um livro que podemos ler”.

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