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conjurar Nathaniel Hone Sketch for ‘The Conjuror’1775

Da Terra ao Céu em alguns pulos

Quando as pedras no caminho são parte da brincadeira

Morelli parece convencido de que se o escritor continuar submetido à linguagem que venderam a ele junto com a roupa que veste e com o nome e o batismo e a nacionalidade, o único valor de sua obra será o estético, valor esse que o velho parece desprezar cada vez mais. Em algum lugar ele é bastante explícito: na opinião dele não se pode denunciar coisa alguma se o fazemos no interior do sistema ao qual pertence o denunciado. Escrever contra o capitalismo com a bagagem mental e o vocabulário que derivam do capitalismo é perda de tempo. O jogo da amarelinha (Cortázar, Julio). Companhia das Letras. 2019. Trad. Eric Napomuceno.   

Acabei este livro esta semana, e na tentativa de fazer uma resenha, mandei uns adjetivos que saíram assim: Um antiromance — um jazz que se torna tango. Uma desmontagem contínua da própria noção de continuidade — uma transformação de qualquer hábito de leitura que você porventura tenha adquirido. Um tour de force para qualquer leitor mas sem nunca perder a beleza, o encanto e o deleite. Uma obra que você vai desejar recomeçar assim que acabar (e se você ler no modo salteado não vai acabar nunca mesmo).

E ainda:

LITERATURA DO PÓS GUERRA. Temas relacionados: Existencialismo, Paris, Jazz, amores, amizades, fraternidades, eternidades, desespero existencial — filosofia, literatura comparada, ficção histórica.

Eu tentei ler este livro no começo de 2007 o 2008 e deixei de lado apesar de ter gostado das primeiras páginas. Sua intenção e sua sinceridade eram bastante diretas a mim, que vivia a vida como se fosse eu mesmo um membro do clube da serpente. Porém, como muitas coisas que eu abraçava com paixão e esquecia logo depois, precisei devolver o livro a biblioteca prometendo que um dia voltaria para lê-lo como ele merecia. Foi quando saiu esta edição novinha da Companhia das letras com tradução de um amigo próximo do autor, Eric Napomuceno. Adquiri a versão eletrônica, que é meu modo normal de ler livros (apenas livros ricamente ilustrados ou que não se encaixam em formatos digitais como as enciclopédias Grandes Ideias eu tenho adquirido em papel)

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Para mim é um livro impossível de não amar, apesar das dificuldades de leitura que possam e de fato se apresentam. Acho que eu só comecei a entender para valer depois da segunda parte, quando a história se centraliza na amizade dos três, já na Argentina. Imagino que uma nova leitura me dê uma nova chave onde poderei encontrar outra forma de interpretar a história do Oliveira/Horácio e do Traveler/Talita.

Posso afirmar apenas que quero já recomeçar a ler este livro, pois o livro, apesar de minha crença de quase nunca retomar uma obra já lida, me fez repensar todos os meus hábitos de leitor, a começar pela impossibilidade de medir a quantidade de livro que ainda falta para terminar, com sua estrutura com capítulos que saltam para frente e para trás; o que é uma coisa muito boa, pois um livro não pode ser medido em números de páginas e uma leitura não é uma corrida — talvez seja o exato oposto disso.

Também, este livro com sua história de encontros e desencontros em Paris e em Buenos Aires, com suas referências inexauríveis à obras de arte do século XX, justamente pela convicção de não ser um centro (e a convicção do protagonista de que efetivamente não há centro algum), de seguir com uma prosa que se parece com o gingado sincopado do jazz (uma imagem muito comentada por todos os que falam deste livro mas que me inspirou mais a ouvir um tango) e que por isso mesmo possui esta des-estrutura maluca.

Seus capítulos que podem ser lidos tanto na ordem normal como na ordem indicada pelo autor com numeração no fim do capítulo (e que no kindle fica um pouco mais cômodo pois são links) que é uma ordem impossível de prever (tu pode olhar a tabela se preferir mas é pouco prático) e que se assemelha muito à uma brincadeira de uma criança.

Eu começo, assim, a pensar em todas as formas possíveis de ler este livro, porque no jogo de amarelinha a pedrinha é o obstáculo que dá o tom à brincadeira; da mesma forma as pedrinhas no caminho do romance podem ser o tom da leitura; me lembrei das nostálgicas aventuras-solo das revistas de role playing game onde ao final de cada parágrafo tu escolhe se quer fazer uma coisa ou outra e para cada decisão um parágrafo é designado e para cada uma das decisões um final diferente é aos poucos desenhado.

— E é por isso que o escritor precisa incendiar a linguagem, acabar com as formas coaguladas e ir ainda mais além, pôr em dúvida a possibilidade de que essa linguagem continue em contato com o que ele pretende desqualificar. Não mais as palavras em si, porque isso não é tão importante, mas a estrutura total de um idioma, de um discurso. O jogo da amarelinha (Cortázar, Julio). Companhia das Letras. 2019. Trad. Eric Napomuceno.

Mas nesta obra não se lê assim— é uma comparação desajeitada, portanto. Para Oliveira e para Maga, para Traveler e Talita o destino sempre esteve traçado, nunca houve uma chance de ser diferente; o que mudam são as formas como vemos e estruturamos o enredo e o cenário, com a atenção certa aos fatores podemos apreciar melhor a própria essência do romance que se apresenta; porém é como tomar um mate com olhos fechados — pode ser inesperado, pode ser intenso, pode ser romântico, mas nunca pode se repetir.

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