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De São Petersburgo a Elisabete do Oeste, dando uma parada na Nova Iorque dos anos oitenta

Dando conta das promessas feitas a mim mesmo

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Dito isso, de repente, ele se sentiu confuso e empalideceu: de novo, a horrível e recente sensação de um frio mortal perpassou seu espírito; mais uma vez, de súbito, ficou absolutamente claro e evidente, para ele, que estava dizendo uma mentira terrível, que agora não só nunca mais teria tempo para conversar horas e horas como não poderia nunca mais simplesmente conversar com ninguém sobre o que quer que fosse. Crime e Castigo (Dostoiévski, Fiódor)

O primeiro Dostoiévski a gente nunca esquece. E mesmo não sendo Crime Castigo o primeiro, pois eu comecei a ler diversas vezes outros livros dele, esse foi o primeiro que eu li até o fim. Mas não o fiz pelo renome grandioso que seus livros possuem, nem porque eu ia fazer reflexões sobre ele em um blog que ninguém lê, tampouco porque eu não tenho mais nada para fazer, mas porque é um livro como eu nunca havia lido antes, um livro de tal urdidura que possui a tenacidade de uma série viciante da netflix ao mesmo tempo que tem a profundidade de um tratado filosófico. E sim, vou falar o que todos já dizem, é um livro imperdível, um livro que muda a vida de quem lê, que vai mais fundo do que qualquer outro que já se tenha lido, e, ao que me informei, nem é a obra prima do autor, para o qual procuro me preparar neste momento.

Não que eu não tenha preparo suficiente — talvez seja apenas questão de acreditar em si mesmo outra vez. Segundo a professora Elena Vássina estes clássicos da literatura russa são leituras obrigatórias no ensino médio russo, tanto Dostoiévski como Tolstói. Imagina ler Guerra e Paz aos dezesseis; bom né? Imagina agora lê-lo aos trinta e seis — com toda a bagagem emocional de uma vida inteira passando a fazer sentido sobre nova perspectiva. Uma coisa que tem acontecido comigo apesar dos pesares, a saber, o deslumbramento que mais se parece com uma crise de TDAH que a internet proporciona, a pandemia e a saúde mental precária, uma coisa que notei (ao menos nos meus melhores dias) é que estou lendo como se eu mesmo estivesse escrevendo, como se tivesse em minhas mãos o esboço de um livro que ainda vou publicar; no fim das contas a leitura é uma habilidade que se desenvolve por toda a vida, e o pior analfabeto é quem se contenta em ser alfabetizado mas não exerce. Afinal, “Parte da obrigação do leitor é descobrir por que certos escritores permanecem”.

Cada foto dessas ia dar uma bela historia, tamanho o poder dos games de narrar
Red dead redemption II

Antes de acabar esse livro eu havia acabado O Psicopata Americano, do Bret Easton Ellis, uma leitura também nada fácil, mas por motivos completamente diferentes. Se o o livro do Dostoiévski versa sobre o crime e a punição, esse outro fala do crime impune. Da completa falta de sentido do universo, da terrível e frívola sociedade que construímos, e mais importante, pelo menos para mim, de como a linguagem pode alcançar novos ares e profundidades explorando velhos tabus como a violência e a profanidade. Algumas vezes eu duvidava do que estava lendo, seja por causa da tradução, seja por causa dos meu próprios olhos: a narração em primeira pessoa, nos colocando no centro da experiência de um yuppie assassino em série, faz questão de avisar que nem tudo é real — em dado momento da história a narração passa da primeira para a terceira pessoa, sem mais nem menos, e não coincidentemente na perseguição policial — o narrador, em seu delírio crescente alimentado por drogas, narcisismo colossal e pelos filmes e músicas que inflam a violência cotidianamente, narra em terceira pessoa os eventos porque ele acredita que está mesmo em um filme de ação. Sucumbe à apoplexia ligando para um advogado e confessando seus crimes (quem viu o filme sabe da cena, mas perde a sutileza da mudança de linguagem). Como ele, no entanto, não acreditamos em nenhuma palavra. De fato, como um Stephen King, Bret Easton Ellis foi buscar nos pesadelos mais infernais a inspiração de sua história.

Assim, entre o clássico e o contemporâneo, entre o século 19 com suas carroças ou os anos oitenta com seus Huey Lewis and the news, têm se deslocado minhas leituras. E foi quando eu acabei, essa semana, após um fim de semana fazendo apenas isso, o aclamado jogo da Rockstar, Red Dead Redemption II, de 2019, cujo enredo se passa no alvorecer do século XIX —e em que eu entendi que é possível habitar dois tempos simultaneamente, tamanho o realismo do mundo criado. E nem entro no mérito literário da escrita e roteirização do jogo: você vai facilmente encontrar alguém falando por aí como Arthur Morgan foi o personagem mais real com que aquela pessoa já teve contato. Ou como foi uma jornada emocionante do início ao fim; eu já passei por todas estas resenhas e memes, e eles não cessam de sair desde que o jogo foi lançado. E sim, o jogo mereceu todo o hype — e quando falo isso parto do princípio que o hype é quase sempre o pior inimigo de qualquer esforço sincero que qualquer artista possa ter.

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E sim, eu também era um cara que não considerava vídeo games dignos de qualquer esforço — e por muitos anos eu pensei assim, até que decidi dar uma chance ao que vinha sendo feito pelos estúdios indies. Fugi do lugar comum do FPS, dos jogos online e dos RPG de jogadores online massivamente. Queria conhecer o estado da arte nos vídeo games — e sempre sem ficar apenas no jogo, atravessando as obras e inspirações transversais que ela trouxesse. Assim, depois de acabar The Witcher III ainda assistiria a série da netflix e acabaria os sete livros originais. Provavelmente o motivo pelo qual ousei me aprofundar em Red dead redemption II foi o fato de haver visto a série Deadwood recentemente, além de haver começado a ler Meridiano de Sangue do Cormac McCarthy. Ainda em vídeo games, para dar uma ideia do que eu espero em jogos, eu recomendo indies como Gris, Journey e, claro, Minecraft. Os jogos eletrônicos, já há algum tempo, extrapolaram o papel de mero entretenimento e se tornaram uma ferramenta poderosa de contar histórias, educar e emocionar. E, sim, são programas de computador, mas nesse mesmo sentido livros são apenas papel e tinta. O espírito por trás da letra, é isso que devemos perseguir. Além disso, vida é muito curta para no prendermos a preconceitos, e expandir nosso leque de entretenimento nunca vai fazer mal.

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