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The Cyclops por Odilon Redon

Toda violência é um pedido de ajuda. Isso eu aprendi ontem ouvindo podcast enquanto pegava um micro-ônibus para casa. Sou um aprendiz rápido, mas eu nunca entendi o porquê das pessoas precisarem sofrer violência e porque ela é tão onipresente e impossível de ser detida; minha vida e a de muitos amigos e parentes, homens na maioria, e de mulheres próximas a estes foram e são atingidas cotidianamente por ela. Minha vida pessoal é uma sucessão gigantesca de violências recebidas e aplicadas e isso nunca foi tão corriqueiro como nos últimos anos. E, ainda assim, eu não fui capaz de extingui-la.

Não é Deus, mas a Dor que desfruta das vantagens da ubiquidade. Cioran, Emil. Silogismos da amargura.

Por isso mesmo talvez eu me veja constantemente procurando por razões de não conseguir escapar da violência, como quem procura no espaço sideral formas de vida alienígenas, ou sinais de vigilância do governo nos homens de preto, ou como o apaixonado que acredita que foi traído e procura por sinais que confirmem isso; eu já atingi o fundo do poço de um tipo de violência inaceitável tantas vezes que chego a crer que sou uma espécie de predestinado ao contrário; e o maior predestinado da história teve, como não poderia deixar de ser, ele próprio uma morte violenta.

Anguish por August Friedrich Albrecht Schenck

Não entendo de Sociologia, mas a partir do que vejo nas mídias e o que aconteceu na minha vida, relaciono as coisas e descubro com certa facilidade de que não existe apenas a violência, como uma entidade maligna que me persegue, mas a violência como modo de execução e atitude e que se infiltra em diversos meios sociais e relacionamentos interpessoais; sofrer violência e não devolver, nem mesmo em outro mais fraco depois, me parece ser a única solução possível.

Talvez eu não esteja pronto para este tipo de anulação de si mesmo mas somente porque eu não vejo, a longo prazo, um mundo ou uma civilização que seja incapaz de usar de violência. Por civilização falo com experiências de mim mesmo, que sou completamente incapaz de abdicar de práticas intrinsecamente violentas (como ver alento no suicídio, ou no refúgio constante do uso de palavrão; é a minha incapacidade de ser gentil consigo mesmo e a incapacidade de ceder em momentos-chave).

Acredito na salvação da humanidade, no futuro do cianureto… Cioran, Emil. Silogismos da amargura.

Esta visão pessimista da própria espécie tem uma raison d’être, de qual eu mesmo sou adepto em muitos sentidos: não acredito que somos o centro do universo ou a imagem e semelhança de Deus; não acredito que a ciência vai nos salvar mas tampouco acho que a religião é a maior invenção da humanidade; que somos condicionados e condenados a viver uma vida sem livre arbítrio, não porque ele não existe mas porque não nos foi dada a Graça; não acredito em vida após a morte, apenas na vida e depois a morte. Ainda assim sou empolgado de maneira quase ingênua com nossa capacidade de se reinventar e se reestruturar. Um mundo onde a violência seja uma realidade distante, como hoje é distante usar telégrafos, por exemplo, não só é possível como pode estar logo ali na esquina.

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Foi Montaigne (veja vídeo no fim do texto) quem primeiro preconizou que o homem deveria aceitar sua condição terrena e próxima do animal para encontrar a verdade. Isso na Renascença. Desde então temos descido cada vez mais fundo nesta observação — seja científica ou filosófica — de que o homem não está mais no Centro da Criação. Então, por que continuar se atribuindo tamanha importância? Um mundo sem formigas se torna inabitável para a humanidade, mas um mundo sem seres humanos não faz diferença nenhuma para nenhuma outra espécie; não à toa cada profeta anuncia que o fim está mais próximo do que anunciou o profeta anterior; a humanidade é voltada por sua própria natureza a um fim último, a um bem comum. Summum bonum como diziam os estoicos.

Na nossa vida moderna mesmo precisamos recorrentemente de um motivo para se levantar da cama — para começar o dia e para ser produtivo. Mesmo nos revezes diários temos dentro de nós em algum lugar uma vozinha que diz para continuar, para se alegrar até, e assim continuamos, dia após dia. Mas e se nada disso for por acaso? E se todos nós servimos realmente a um projeto maior onde mesmo a menor colaboração signifique uma alegria sem fim e sem custos — uma alegria indefinível? Enfim, continuemos a procurar. Por enquanto ao menos.

Viver é aprender, e deixar de aprender é outra maneira de definir a morte. Somos curiosos por natureza e confusos por costume. Eu não tenho condições alguma de dizer a verdade, mas sinto a obrigação de buscá-la até o fim. Não acredito na teoria do fim do mundo, o apocalipse e a gênese acontecem todos os dias. Quisera eu a sensibilidade para estar presente, completamente presente, neste momento.

E talvez a violência seja apenas um subproduto do medo e da vaidade humana. Uma ingratidão cósmica que não enxerga os esforços conjuntos feitos ao longo de milhões de anos de evolução. E talvez seja a hora de despertarmos deste sono profundo de ratinhos na gaiola giratória, e abraçarmos com todo nosso coração as dificuldades desta vida humana, tão complicada, tão incerta mas ao mesmo tempo tão palpável e cheia de possibilidades.


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