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Discordando de Cortella (mas com respeito)

Após ler dois livros deste grande filósofo brasileiro, me senti à vontade para discutir um pouco sobre suas proposições e sobre meu próprio conhecimento de mundo

Cortella é um filósofo brasileiro. Facilmente encontrável no youtube e nas correntes de whatts app. Suas ideias são na maioria positivas (exceto quando se trata da geração millenial, assunto que vamos tratar mais adiante), e tratam da vida e da capacidade da humanidade de transformação do mundo. Ele é mal compreendido como uma espécie de coaching só porque faz palestras motivacionais, mas se você olhar o background dele vai ver que ele já tentou ser padre, ele já trabalhou com o Paulo Freire e ele dialoga com intelectuais (oriundos, também, de universidades muito bem conceituadas) como o Pondé e o Karnal. A primeira vez que ouvi falar dele foi em um documentário que tem a minha maior admiração, Eu Maior, de 2015 . Tem Rubem Alves lá também em, talvez, seu último ano de vida.

Como a sociedade hoje é mais focada no indivíduo, a ideia de propósito está marcada por um conceito que já existiu e voltou com força: o da realização. (…) Uma vida com propósito é aquela em que sou autor da minha própria vida. Cortella, Mario Sergio. Por que fazemos o que fazemos? Ed. Planeta.

Por isso fui lê-lo com entusiasmo. É difícil não lembrar da voz dele, com aquele sotaque marcante. (Na verdade desafio você a ler o livro dele e, se por um momento imaginar a voz dele lendo conseguir parar). O mesmo se dá com os livros, realmente memoráveis, e que embora sejam de filosofia, são muito leves e bem pensados — didáticos mesmo. E despretensiosos, uma qualidade que para mim é muito cara. Seguem meus comentários de cada destaque que fiz enquanto lia:

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Nas melhores livrarias (que ainda não fecharam)

Humanidades

No campo da filosofia, existe uma formulação clássica segundo a qual o trabalho pode ser sintetizado como uma ação transformadora consciente. Todo animal tem ação, alguns têm ação transformadora, e nós, humanos, temos ação transformadora consciente. Cortella, Mario Sergio. Por que fazemos o que fazemos? Ed. Planeta.

Esta aula eu ainda me lembro; é quando se pensa o trabalho humano, um capítulo importante de qualquer livro didático de filosofia que se preze, como o Filosofando. Ainda que não se estude Marx na faculdade de filosofia (na minha ele não foi sequer mencionado), não pude deixar de lembrar que é ele quem tem a famosa observação sobre o trabalho alienado, do qual até hoje não fomos afastados.

O historiador israelense Yuval Noah Harari vai apontar que mesmo no futuro a tecnologia não vai liberar o homem, coisa que Marx achava que ia, pois o desenvolvimento humano não foi pensado nesse sentido. O que acontecerá mais provavelmente, serão hordas de desempregados que não poderão acompanhar os constantes avanços da tecnologia, criando uma demanda cada vez maior de uma ajuda do governo como Renda Básica de Cidadania. Aí que me pergunto: existe humanidade sem trabalho? Segundo Cortella:

O propósito original do trabalho é que não nos deixemos morrer. Afinal de contas, somos seres de carência, de necessidade. Ou construímos o nosso mundo ou não há como existir.

Sobreviver é, em si, trabalho, mas e em um mundo em que sobreviver não é mais um esforço? Onde o suicídio, acidentes de trânsitos e doenças relacionadas à obesidade são a maior causa de morte do que a fome, as pestes e as guerras? E se o mundo não subsiste sem os homens, talvez sim, mas apenas o mundo humano? Ele é uma construção social, sem dúvida. Neste caso o trabalho, cairia em descrédito. Como diz Eclesiastes, é tudo vaidade das vaidades. Posso considerar a luta diária contra o tédio e a repetição vazia um trabalho, portanto?

Poderia ser diferente? É possível que sim. Essas pessoas poderiam trabalhar menos, de maneira menos sofrida, se repartíssemos o que é produzido.

A questão é que caminhamos para a concentração em vez da distribuição e, de modo realista, não temos uma partilha das tarefas. Enquanto algumas pessoas são sobrecarregadas, outras são liberadas.

Cortella, Mario Sergio. Por que fazemos o que fazemos? Ed. Planeta.

Nisso eu não poderia concordar mais, mas eu não posso acreditar que eu vou morrer sem viver isso. Agora, uma experiência pessoal: uma coisa que eu admirei muito foi o ambiente de retiro de meditação, em especial o de meditação vipassana, um ambiente onde o respeito imperava entre os indivíduos, onde se evitava falar em dinheiro e política, pela harmonia.

Eu passei um mês em um retiro destes em 2013, e um mês nas proximidades deste mesmo retiro em 2015. É onde eu passei a acreditar em autogestão, em autoridade natural (em oposição a autoritarismo). Ainda que o descredito a gurus e mestres espirituais esteja mais em alta do que nunca hoje em dia, é preciso lembrar que existem muitos exemplos positivos para contrabalancear os negativos, seja o do Trigueirinho que nos deixou este ano, seja o de S.N. Goenka que sempre negou a pecha de guru, bem como seus professores assistentes, os quais eu conheci e onde atesto, desde então, minha confiança.

Foi precisamente neste lugar santo que entendi que as coisas boas e úteis não são propagandeadas na televisão ou nos comerciais do youtube; entendi finalmente que se quiseres mudar o mundo tens que começar pela tua vizinhança. Os ensinamentos desta organização, budista e não-sectária, são encontrados aqui.

Mas e quanto ao mundo secular, o mundo do dia-a-dia, aquele que voltamos depois que acaba o retiro, quão justo ele é e o que eu tenho feito para que ele se torne mais justo ainda?

Libertação

Agora a parte da discussão e divergência de opiniões. Os excertos a seguir são do outro livro “A sorte segue a coragem!”:

Quando lancei o livro Por que fazemos o que fazemos?, houve alguma polêmica por eu ter chamado a nova geração de mal-educada, e não mal escolarizada.

O pai e mãe dizem “eu trabalho para sustentar, esse é meu trabalho”. Há uma grande conformidade. E essa conformidade de certa forma acabou marcando uma nova geração, a millennial, que traz aí a necessidade de ter algum projeto de vida.

Há uma distinção entre ser revoltado e ser revolucionário. A pessoa revolucionária é aquela que altera nela e na comunidade algo para uma direção positiva e melhor do que a anterior. O revoltado só fica no campo da mera agitação.

Cortella. Mario Sérgio. A Sorte Segue a Coragem. Ed. Planeta

Bem, eu preciso discordar do grande Cortella nessa. A geração Millenial, na qual eu me encontro, é a “geração perdida” do crash de 2008, quando a bolha imobiliária estourou. Para piorar, é consenso entre os especialistas que a expectativa financeira que as gerações anteriores tinham jamais será alcançada nesta geração novamente; e esta catástrofe só começará a ser recuperada na próxima geração. Ainda assim esta geração é a que tem os mais altos níveis de escolaridade da história. Definitivamente Cortella não pode acusar esta geração de mal educada no sentido estrito da palavra.

Agora, o nosso país deu uma guinada para a direita, com um presidente que é ele mesmo próximo de uma geração baby boomer, a geração que de fato destruiu o planeta e que não quer fazer nenhum tipo de reparação em relação às suas ações. Como não se sentir revoltado? A energia que a raiva dá neste caso é perfeitamente justificável quando se pensa que temos eleito um presidente que é documentadamente machista, homofóbico e elitista?

Ainda, contra todas as evidências (vai que ele seja só um enorme vazio, completamente dominado pelas forças do mercado, um cordeiro a ser sacrificado pelo bem maior, vá lá) como podemos aceitar que nos joguem nossa “incapacidade” de decisão assim, na cara? Eles riem agora, mas nós riremos por último. Da minha parte, eu pensei que ia ser mendigo santo ou usuário de drogas sonhador, vagabundo iluminado, sei lá, viver com menos de cinco dólares por dia viajando pela América do sul só de bicicleta, e já tinha até me acostumado com estas ideias.

Quanto à afirmação de que é possível ser revoltado sem ser revolucionário e isso é nocivo. Eu concordo embora não faça juízo de valor. O jovem carrega em si a energia da revolta, isso é inegável, mas, não é possível ser revolucionário sem ser revoltado, e nisso eu fico com meus amigos, tanto os vivos como os mortos que carrego no peito. Sorte deles que não estão aqui para ver isso e, parafraseando Jó, mais sorte ainda de quem sequer nasceu.

Quando penso nos amigos que perdi no excesso de álcool ou drogas, ou pior, nos que ainda estão vivos, mendigando, tentando encontrar uma liberdade negada pela ganância de poucos; quando penso na depressão reinante nos meus amigos nas cidades polos do agronegócio, que nada mais são do que bolhas econômicas, nascidas do nada e do nada muito ricas, onde você não pode sequer descer do ônibus se não tiver carteira de trabalho — cidades que nem nome de cidades têm, senão nomes de marcas, o capitalismo em seu apogeu, uma grande depressão dos sentidos. Não posso me revoltar nestas circunstâncias?

Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância. Não há pró nem contra, o assassino não está certo nem errado. Podemos atiçar o fogo dos crematórios, assim como também podemos nos dedicar a cuidar dos leprosos. Malícia e virtude tornam-se acaso ou capricho.

Camus, Albert. O homem revoltado .

Quando penso que nunca terei, nem meus amigos mais talentosos, imaginativos e esforçados (e aqui falo de gente que trabalha desde os quinze, que teve boa educação e está formada), a felicidade que me é cabida pelos nossos esforços, sonhos e talentos… isso só porque uma porção de velhotes gananciosos arruinaram a economia mundial, é natural que eu me sinta em um completo niilismo, onde o mundo se torna apenas fundamento e ruína; eu tinha dezessete anos quando vi a obra Clube da Luta, conheci Hakim Bey e ouvi falar dos movimentos antiglobalização. 20 quando soube do Fórum social mundial. Em 2009 eu fui a pé até Belém do Pará para conhecer, com um amigo apenas a me acompanhar, o Claudeir. A jornada levou mais de um mês, mas foi um aprendizado em si mesma. Ainda havia esperança, então. Depois até isso se foi.

Hoje se você diz que queima dinheiro você esta dizendo de outra forma que é louco. Não é esse o ditado? Mas é isso que os bancos fazem. Transmutam sonhos em dívidas. E para além de qualquer dúvida, nossos problemas já não são econômicos senão sociais e mesmo epistemológicos; quando o “filósofo” mais falado do país é um cara que desacredita todas as evidência empíricas mais bem estabelecidas, quando o futuro ministro da educação diz que faculdades não são o objetivo da educação de massa e exalta os youtubers que sem estudar ficam ricos, quando dizem em rede nacional que escravidão nunca aconteceu da parte do Brasil e de Portugal (e é eleito presidente) bem, aí pergunto-me se estar revoltado não é um direito ou até mesmo um dever.

VAI UMA MELANCIA AÍ Marcos meu vizinho de muitos anos atrás

Angst

“Aquela [sensação] que aparece quando você acorda e “unhnnnn, não sei”. A definição é mais sensorial do que intelectual. Você puxa a gola da camisa, e diz com estranhamento “eu não sei…” Heidegger dava valor à angústia porque, segundo ele, era a sensação do nada. Isto é, todo sentimento tem um objeto. Alegria, raiva, inveja, mas a angústia não tem.

(…) você olha para o abismo e o abismo olha de volta para você. Essa é uma sensação assustadora. Heidegger valorizava essa percepção ao dizer que, como a angústia é o nada, e o nada é a possibilidade plena, era nesse ponto que você iria se encontrar”

Semanas atrás estivemos eu, o meu melhor amigo, Rozivaldo e a Fatima, minha esposa, em uma excursão na caverna do jabuti, em Curvelândia. Tínhamos dois guias, o professor, um paleontólogo da UNEMAT e o guia local, o antigo proprietário daquelas terras e que agora faz estas incursões e a quem faz-se doações. Um era científico e intelectual, o outro era lúdico e crente. Ambos eram muito gentis. Em dado momento este que é o guia local, pediu que em frente ao abismo todos desligássemos as lanternas e ficássemos em silêncio. Todos fizeram isso. Durante meio minuto ou dois minutos, todo mundo ficou quieto.

Neste momento eu entendi que estamos completamente sós e que ninguém precisa se importar com a gente. Não é uma condição sine qua non, obrigatória, que nos amem. Isso meio que ligou um sinal de alerta: “opa, que estou fazendo na vida e quem estou amando na vida?” Na escuridão completa, sem amigos, sem esposa, sem mercado, sem bicicleta, balançando a mão na frente do rosto na escuridão completa, só os insetos e pinga-pinga da calcita caindo das estalactites, eu entendi que não enxergava nem mesmo minha mão passando na frente da minha cara, e isso é como eu tenho vivido a vida toda; sem nem uma gota de alucinógeno (o que é raro em encontros com o meu amigo Rozivaldo) eu estava tendo alucinações sobre o valor da minha vida.

O que você deixou de fazer e deveria ter feito? O que você escolheu porque era mais cômodo? As escolhas terão seu custo.

Ter em mente “um dia vou ser bailarino”, “um dia vou ser escritor” e não o fazer permite que se viva o sonho, portanto, se viva muito mais a expectativa do que a realização.

O individualismo que tomou conta de mim ao longo da vida adora ler isso: eu tenho plena capacidade de escolha e sou o árbitro da minha própria vida. Mas quando se pensa, por exemplo, que na China ainda não existe um conceito para liberdade como para a gente aqui; quando se lembra que na Índia eles estão com mais de um bilhão de habitantes; quando se vê que o Dalai Lama foi deposto só por que a China não concorda com religião; quando eu vejo que eu me preparei a vida toda para uma vida que não se importa com os rumos que a vida leva… quando tudo, absolutamente tudo muda por que uma pessoa próxima morreu, e de repente de pobre você passa a menos pobre e isso é um salto impossível de calcular; então você passa a ver que nada está sob controle, por mais que queiramos.

Amar e mudar as coisas

Me interessa mais

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