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O vitral em forma de rosa sobre o altar na “Boston University’s Marsh Chapel”

PUDDING: Mas isto não é —

POINTSMAN: Como assim?

PUDDING: Não é uma coisa um tanto escusa, Pointsman? Mexer com a consciência de outra pessoa dessa maneira?

POINTSMAN: General, a gente está só seguindo uma linha de pesquisa e investigação iniciada há muito tempo. A universidade de Harvard, o exército americano — não são instituições escusas de modo algum.

PUDDING: Mas isso não, Pointsman. É uma coisa obscena.

POINTSMAN: Mas os americanos já andaram experimentando com ele! O senhor não entende? Não estamos, por assim dizer, corrompendo uma virgem, não se trata —

PUDDING: Então só porque os americanos fizeram isso nós temos que fazer? Temos que deixar que eles nos corrompam?

PYNCHON, Thomas. Arco-íris da gravidade. Companhia das Letras, São Paulo, 2017. 2ª edição. Tradução de Paulo Henriques Britto. Páginas 85–86.

Envelhecer bem é uma arte. Isso quem me ensinou foi uma amiga, que disse sonhar com as marcas que a idade traria quando ficasse velha; marcas que pareceriam ter se originado do hábito de sorrir inocentemente. Quando o mundo todo parece se voltar contra os velhos e mais fracos eu me lembro deste ensinamento. A pureza do sorriso das crianças e a dignidade das marcas da velhice, o início e o fim de um ciclo aparentemente infinito de nascimentos. Somos cópias gastas de um conceito original, e em um mundo cujo céu está por desabar, as diferentes estirpes de fantasmas disputam um protagonismo infantil inútil. Meu deus é o único, dizem todos, cada um com seu diferente deus; enquanto isso, bilionários ficam mais bilionários, latifundiários ficam com mais terras e cabe a umas poucas minorias perseguidas proteger aquilo que interessa a vasta maioria.

Os jornais se equilibram entre narrativas; ao menos eles ainda têm voz. No ocaso da civilização ocidental jornalistas e repórteres serão os únicos que não estarão de joelhos implorando para ser poupados da ira de Deus. Não foi por falta de aviso, no entanto. “Quem realmente está falando a verdade?”, você se pergunta. Todos e ninguém. Quem ainda possui seus pais por perto, e mais ainda, quem possui seus avós, que se alegre; quem não os possui, ao menos aprenda isso dos povos originários: eles cuidam de você de onde eles estiverem.

Minha avó teve um derrame que a impediu de falar nos últimos dezessete anos. Isso não a impediu de expressar seu amor de tantas outras formas que é impossível não senti-lo aqui ainda. Mesmo distante ela sempre esteve presente. Até que não estava mais. O vírus (é lugar comum dizer, eu sei, mas que precisa ser dito) trouxe uma lição urgente a todos nós, e já se anunciava há alguns anos antes, quando visto em retrospecto. Primeiro perdi o Vitor e depois a minha avó. Como sociedade, perdemos a aposentadoria e depois ganhamos um teto de gastos que nos engessou os gastos sociais por vinte anos (vinte!) anos. Se alguém acredita em karma há de convir que perder mais de cem mil vidas no ano seguinte não pode ser coincidência — colhemos aquilo que plantamos.

Se o ego é a voz dizendo que somos melhores do que de fato somos, é possível chegar à conclusão de que ele inibe o verdadeiro sucesso ao nos impedir de realizar uma conexão direta e honesta com o mundo à nossa volta.

HOLIDAY, Ryan. O ego é seu inimigo. Intrínseca; 1ª Edição (15 setembro 2017)

Claro, é oportunismo procurar sentido na tragédia, o que, em última instância, nunca terá. Mas podemos tirar algumas lições de más situações sim, e é isso o que define nossa espécie, de certa forma. Uma delas é não instrumentalizar as religiões: existem coisas boas e ruins em qualquer campo e, dada nossa tendência a olhar apenas o ruim, é óbvio que deveríamos atacar as religiões. Até a bruna marquezine fez isso! Porém religiosidade é uma coisa, instituição é outra; mesmo que não houvesse Deus, ponderou Voltaire certa vez, deveríamos inventá-lo. Não porque precisamos de uma força maior que nos tutele, no entanto, mas porque é natural no homem perguntar pelo porque. E nisso consiste a espiritualidade. A igreja, no entanto, cristalizou suas crenças em dogmas, o que coloca a discussão em outro âmbito.

Quando vimos os católicos conservadores na frente do hospital agindo como agiram, não deveríamos questionar toda a religião por causa daquilo, do ponto de vista deles eles estavam certos, defendendo suas crenças (que para um católico é dogmática em relação à manutenção da vida mesmo em estado embrionário) como um antifa faria ao protestar contra os abusos de autoridade nas ruas; eles foram, assim como os antifas muitas vezes também são, massa de manobra, pois foram informados ilicitamente do que ocorreria ali. O procedimento hospitalar era legal, assim como o protesto; o ilícito foi a divulgação dos dados e do local. Mesmo com boas intenções dos dois lados o diabo conseguiu, afinal, criar confusão.

Isso nos mostra não apenas a ingenuidade de quem é extremista, se deixando levar por demagogos com ares de conservadores com intenções de ascensão política, mas também como se relacionam intimamente os poderes religiosos e os poderes estatais; como a terrorista doméstica que divulgou os dados sabia aquilo, o hospital onde ocorreria o procedimento e o nome completo da criança, que eram dados sigilosos do estado? A resposta, me parece, é que obviamente estamos já sob um governo de matizes teocratas e que o estado laico já é passado. Que a narrativa é de que tudo vale para defender os valores de uma nação cristã ocidental (e que provavelmente resultará nos moldes daquilo que já foi descrito pelo genial Nelson Rodrigues em A vida como ela é).

Se é para trazer os anos cinquenta e sessenta de novo, que seja o woodstock e os festivais de MPB; na impossibilidade disso, que tenhamos em pauta questões de fato prementes à sociedade, como o gap educacional que este ano criou para milhões de crianças; como vamos superar a desigualdade gigante que se abre a nossos pés; vamos nos articular politicamente de modo a usar o que restou (e do que restar quando o desgoverno acabar aquilo que parece ser sua missão sagrada) do governo e do estado; sempre fui contra a cultura de celebridades, mas precisamos delas, desde que conscientes, para pressionar o público e o governo a fazer alguma coisa pela manutenção da biodiversidade e das florestas; demarcação das terras indígenas já; proteção e saúde para os povos ameaçados, pelo PIB verde ganhar a relevância que de fato merecem, mesmo mineirar bitcoins causa aumento do aquecimento global, você sabia? Por um retorno às origens, pelo respeito ás tradições, às ontologias várias. Não pelo fim da religião mas pelo florescimento de todas. Até do ateísmo.

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