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Os bororos foram os habitantes originais desta região há pelo menos 7 mil anos

Rejeitar um insulto ou uma piada é algo factível (embora nem sempre seja fácil fazê-lo sem se prestar ao ridículo); mas como rejeitar um modo de vida que vinha de gerações, o próprio ar que se respira? (…) Não sinto que eu esteja sendo justo ao descrever aqueles anos. Mas ninguém escreve para ser justo.

Chacoff, Alejandro. Apátridas (p. 64). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Pulei uma semana aqui e foi proposital. Precisava me afastar um pouco para refletir nas consequências das minhas próprias palavras — e isso inclui a fidelidade delas à realidade. Além disso, os cursos, as aulas, o trabalho e os estudos paralelos engolfaram a rotina de escrita.

Trocar de terapeutas foi outra coisa que também balançou um pouco as coisas. Parece bem adulto dizer isso, “estou entre terapeutas no momento”, mas por razões que foram explicadas em outra publicação, é bem mundano o motivo desta aplicação. O terapeuta que eu usei, e sua terapia, foram interessantes em alguns momentos, mas não tinham muita aplicação prática na minha vida.

Foi o equivalente a parar de comer carne, coisa que fiz por dois anos entre 2009 e 2011 e que se me ajudou a conhecer melhor uma perspectiva nova, mas que muito me atrapalhou no dia-a-dia — como tantas coisas no mundo, o fetiche social por carne é socialmente arraigado e difícil de mudar. Mas não impossível, coisa que muita gente tem tentado, seja com carne de vegetais, seja com pesquisa para criação de carne artificial em laboratório.

Não sou a favor da perseguição a quem não consegue ou não deseja parar de comer carne; sou, sim, a favor de pagar o preço justo por ela, que é o preço do aquecimento global, da destruição da Amazônia e do futuro de nossos filhos e netos. Para ser sincero é uma coisa que nem eu nem você, sozinhos, temos que resolver, mas todo mundo junto, através de lobby e pressão política, porque a alternativa, seja a insistência no boicote, na meditação pela cura planetária ou no eco-terrorismo, só vai provar quão patéticos podemos ser em relação às corporações e governos.

Como disse Ailton Krenak no seu último livro, A Vida Não É Útil:

Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. (…) Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso [destruição ambiental], mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo na ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.

Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. (…) Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo — isso é uma mentira bem embalada.

Krenak, Ailton. A vida não é útil (pp. 56–57). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Embora essa sacada do Krenak seja muito bem vinda, não desfaz o mérito de quem tenta, seja como for, mudar as coisas para melhor. E também não resolve o fato de que a destruição acelerada do meio ambiente anda lado a lado com o aquecimento global — em um ciclo que se alimenta a si mesmo, com potenciais catastróficos. O que me faz imaginar porque os políticos não desejam fazer nada pelo planeta quando precisam escolher entre isso e alavancar sua própria economia: são cínicos, e não acreditam que possam fazer mais nada.

Krenak recomenda sempre que pode o livro A Terra Inabitável (Wallace-Wells, David, Companhia das Letras, 2019) e qualquer um que ler aquele livro vai entender que a catástrofe climática é seríssima, pontual e ao alcance de todos. Basta, olhar pela janela para ver a fumaça que tomou o país, a região e a cidade, fumaça das queimadas. O Pantanal já perdeu 12% de si nas chamas. Está ficando tudo fora de controle, e está piorando.

Hoje, as árvores da Amazônia ficam com um quarto de todo o carbono absorvido por ano pelas florestas do planeta. Mas em 2018, o presidente eleito Jair Bolsonaro prometeu abrir a selva tropical para o desenvolvimento — ou seja, para o desflorestamento. Quanto estrago uma só pessoa consegue causar ao planeta? (…) Isso quer dizer que a política de Bolsonaro equivale a acrescentar, mesmo que apenas por um ano, uma segunda China inteira ao problema do combustível fóssil mundial — com um Estados Unidos por cima, para completar.

Wallace-Wells, David. A terra inabitável . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Krenak vai ainda falar que esse moço, autor deste livro, que ele conheceu pessoalmente, “é um bom moço, ainda que venha de Nova Iorque”— uma cidade que a seu ver é como “uma rodoviária gigante”. Guardadas as devidas proporções, posso entender seu ponto — mas talvez as pessoas tenham aprendido a gostar de rodoviárias infinitas, espaços desterritorializados e homens sem pátria. Como dizem, no capitalismo tardio somos todos assalariados com síndrome de Estocolmo.

Quando se coloca, no entanto, o custo que é para o planeta a manutenção de certos privilégios, fica evidente que precisamos rearranjar, senão subverter toda nossa compreensão de mundo e de modernidade se quisermos salvar as próximas gerações. Um avião, por exemplo, símbolo da modernidade e capacidade inventiva da humanidade, é um imenso poluidor. Quando a Greta Thunberg foi de veleiro da Suécia aos Estados Unidos, foi esse exatamente o motivo. Ainda assim, dificilmente se desencantará a sociedade de que o mundo precisa de menos aviões e voos.

Nesse caso a aposta mais certa é na oferta e demanda, assim como na decadência natural da economia quando a crise incessante pela qual o capitalismo se perpetua nos atingir; muitos voos estiveram vazios no auge da pandemia; bom exemplo é a imagem do cemitério de aviões no deserto do Arizona que aparece no documentário da prime video sobre capitalismo (link) . Foi nesse documentário que aprendi o quão frágil é nosso tipo de economia, que poderia arruinar-se em questão de meses se, por exemplo, houvesse uma praga em uma plantação de seringueiras (cuja matéria prima não pode ser substituída por produtos artificiais), como já aconteceu no Brasil (perdendo portanto o papel de produtora para Ásia).

Parece frio, mas fazem 38º Celsius a neblina é pura fumaça

Eu estive lendo o livro do Alejandro Charcoff, Apátridas, e, empolgado que fiquei, fui ver onde ele viveu sua infância, na rua Cel. Otiles Moreira no bairro Duque de Caxias II, nos anos 90. Sabia que a chance de reconhecer suas descrições era baixa mas era feriado e eu não saía de casa pra nada há muito tempo. Eram dezesseis quilômetros desde aqui de casa,e pedalei com máscara e óculos; esta cidade é profusa em subidas e descidas e a fumaça das queimadas ao nosso redor (chapada, xingu e pantanal) nos castiga todos juntos. Uma complementação perfeita para um vírus que ataca as vias respiratórias, mas apesar disso a média de novos casos no estado tem permanecido estável, ou assim eu desejo que seja. Fato é que pedalar até lá, depois de tanto tempo em casa, mesmo que só por pedalar, foi bastante interessante.

No caminho eu me lembrei de muitas das pessoas que conheci aqui, algumas delas até mortas; enquanto pedalava, atravessando aquela camada de fumaça fina porém persistente, ouvindo música e contando com um misto de sorte e olhar arguto para o trânsito, atravessei a cidade para verificar a casa onde cresceu o autor. E nisso refleti um pouco sobre as manifestações artísticas que eu entrei em contato enquanto vivi aqui, só aquelas que mais me impressionavam, me distraindo da dificuldade imensa de pedalar após tanto tempo parado. E não é isso a arte e a cultura afinal, um fio de esperança e alegria que nos distrai enquanto labutamos a sobrevivência no dia a dia?

Adir Sodré, o artista plástico e Antônio Sodré, o poeta, ambos falecidos. Comprei alguns livros do poeta (um sobre Kierkegaard quando ainda decidia qual seria meu objeto de estudo para monografia, e outro, um romance, Ricardo Guilherme Dicke, que ainda, vergonha minha, tenho que ler), quando ele ainda andava pelos corredores da universidade vendendo seus livros usados. Era o melhor vendedor de livros que eu conhecera. Hoje suas poesias cobrem a parede do instituto de linguagem da UFMT, como se fosse a sua própria alma materializada. Adir Sodré, que morreu este ano, foi um artista plástico que só vi uma vez, cruzando com ele na frente da energisa — próximo ao trabalho de minha esposa. Ele parecia confiante e ao mesmo tempo discreto — me lembrou o Ai wei wei no estilo despojado de se vestir. Sua arte, no entanto, é incrivelmente exuberante. Só estes dois exemplos (existem muitos outros que admiro muito, como o Clóvis Irigaray), para mim são suficientes para ver como a cidade é prenhe de arte e artistas incríveis, e como é uma sorte entrar em contato com isso.

update: a casa da infância do autor foi demolida — ele revela no finalzinho do romance.

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