W4LKER

Meisje met de parel — Pintura de Johannes Vermeer - 1665

Abril acabou. Com ele, 25% dos meses de 2020, o ano zero da pandemia. Para quem aguentou até aqui, parabéns — está apenas começando (sempre está apenas começando até que um dia acaba, como diz aquele provérbio japonês, “em uma viagem mil léguas, 900 é ainda a metade”).

Cotidiano, hábito e rotina são palavras que significavam algo totalmente diferente até então. Eu não faço ideia do que eram. Agora significa apenas um plantinha nascendo na rachadura do asfalto e nada mais.

O tempo é tão escorregadio que parece ilusório. Escorre pelas mãos. Fico furioso, fico frustrado. Na delicada construção dos dias a dois, vou ao banheiro gritar mudo para não me tornar um fardo mais pesado do que já sou. Não funciona.

Bem que dizem que é para aguentar junto, “na saúde e na doença”. Já são boas semanas que levamos um ao outro adiante, com ninguém mais entre nós. No entanto isso também vai passar. Eu envelheci. Mesmo sem o sol, sem o exercício e sem o trabalho na rua, eu envelheci. Acho que era para ser assim mesmo. Sou o irmão mais velho, o que veio primeiro e isso é tudo que sempre serei.

A pergunta que não quer calar no entanto é: que mundo nascerá desta terra desolada? E mais importante ainda: que mundo eu quero que nasça? O que eu vou dizer aqui não passam de conjecturas — como sempre foi — mas são pensamentos muito importantes para mim. Inevitáveis até.

A pandemia é apenas um dos nossos vários problemas. Talvez o mais urgente, mas não necessariamente o maior. Ou o mais perigoso. O que quero dizer é que precisamos rever uma enormidade de conceitos e ideias. Precisamos discutir à exaustão e precisamos fazer isso já. Se há algum platô tecnológico que permita isso, nós já chegamos. Mãos à obra.

Não falo por mim, mas pelas testemunhas do amanhã. As crianças que hoje acham que estão de férias e que um dia vão estudar sobre isso (ou talvez não). Não falo por mim. Quem sou eu? Eu mal consigo me manter em um grupo de whatsapp casual sem surtar; só acho que precisamos urgentemente construir pontes, mas que se não for uma vontade de todos os envolvidos sempre haverá o abismo para nos puxar. Difícil travessia, claro, mas não precisamos fazer sozinhos.

Existem bons líderes e mal líderes. E existem bons e maus governos. E se isso é simplista a princípio, há uma razão para isso. As pessoas não precisam de governo. E se ainda assim houver governo, que seja um governo que não governe, porque, mais uma vez, as pessoas não precisam de governo.

E, de certo modo isso já acontece, mas não assimilamos à nossa linguagem. Sim, porque a linguagem é a fonte da maioria de nossos problemas e desta vez não é diferente. Entre sentir e entender sempre haverá um abismo intransponível. Precisamos dar salto no escuro. Um salto de fé.

Hanged flowers por Velinxi https://www.reddit.com/r/lifeisstrange/comments/g6t4kq/no_spoilers_hanged_flowers_by_velinxi/

Hoje estive jogando “Life is Strange”, e tive a impressão de que eu voltava à faculdade. Sim, pois a minha rotina de estudos, como a de todo mundo, foi arrebatada e agora, em casa, tenho que me debater com as escolhas entre o que ler, o que aprender e o que esquecer. Entrar na rotina de Max Caulfield (mesmo sobrenome que o protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio, que também estou lendo), uma jovem estudante de fotografia, me lembra que por trás desta pele e carranca ainda existe um anseio por sensibilidade.

Mas eu penso demais. Anseio, planejo e verifico demais. Não à ponto da insônia, mas quase. Não dá mais para fazer planos; é preciso aceitar e reconhecer o estado em que chegamos. Não podemos sair de casa, mas se precisar saímos (com máscaras e álcool em gel no bolso). Não precisamos do presidente, mas sem ele quem nós iríamos chamar de incompetente? De nazista? O neoliberalismo é a maior máquina de moer pobres que a humanidade já inventou, mas e se precisarmos dela (apenas a máquina, não o espírito que a move) depois que isso tudo passar? Você não precisa se matar para construir pontes se entender que pode dar novas utilidades às que já existem.

O auto intitulado “subversivode84” era o nome de um e-mail, o primeiro que já tive. Engraçado como eles nos deduram. Isso era de uma época em que ser desobediente e rebelde era algo que trazia orgulho. Eu o escolhi porque soube que esse era, junto de “comunista”, a pecha que era dada aos estudantes e resistentes nos fins dos anos 60. Veja bem, os anos 60 não acabaram: temos um representante legítimo dele no poder. Mas não é com ele que precisamos nos preocupar.

Obediência é uma virtude e na cabala tem toda uma sephirot para isso; com tantos quilômetros rodados finalmente posso dizer que entendi que nunca foi uma questão meramente de questionar toda autoridade, mas de permanecer fiel à minha verdade. Ler A Desobediência Civil de Thoreau e assistir Capitão Fantástico, entre outras coisas, é entender que entre o dizer e o fazer existe um mundo de diferença e que coerência é mais relacionada a um estado da arte do que a algum alinhamento político.

Disso se decorre que de nada adianta cair de pau naquele que já é conhecido como o “pior presidente do mundo nesta pandemia”, porque a maior parte do que vemos é apenas a espetacularização da política e nada mais. E política não é isso_, pelo menos não só isso_. Inclusive a escolha de assistir a esse show de horrores ou atentar para aquilo que acontece nos bastidores é ela mesma uma escolha política.

Max Caulfield, já nas primeiras horas de jogo, fala algo sobre ser um Herói do Cotidiano e eu meio que entendo que ela quer dizer, porque não é só o primeiro ministro ou o presidente quem fazem esforços colossais pelo bem de todos: o pai que aguenta mais um dia de incertezas e a mãe que suporta as dificuldades. O filho, também, que se comporta e que segura a barra mesmo sem saber que o faz; todos eles são heróis porque fazem atos cotidianos de heroísmo.

Data de publicação: