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Não respira, Ripley, não respira

Minha última viagem para valer já parece fazer mais de um ano. Acho que a aula de campo de despedida com os amigos da geografia, aula do Denis, quando fomos até Tangará da serra e tive que sair no meio para participar do primeiro dia no meu novo trabalho. Me acompanharam até a rodoviária meus bons companheiros, e na volta, sozinho, o ônibus para. É madrugada e se passam horas sem nenhum movimento. Descubro (e vejo) depois que foi um acidente onde um carro mergulhou em direção a um ônibus, matando o motorista do carro imediatamente. O ônibus, evacuado, foi completamente tomado pelas chamas, deixando apenas o chassi, surrealista moldura do dia ainda frio a nascer.

Talvez se eu contasse a viagem ao interior quando batizamos as meninas ainda estaria menos distante, mas esse tipo de viagem não conta, afinal, duraram quatro dias, contando ida e volta e não fizemos nada além de participar do batizado e visitar meu avô. Quem conhece a rodovia 163 em direção ao norte sabe do que estou falando, um deserto verde, até onde a vista alcança, e onde um pássaro não é capaz de encontrar um galho sequer para pousar. A ápice da cultura humana de domesticação do ambiente — e da acumulação de capital.

Não, o tipo de viagem que meu coração tem ansiado talvez nem seja mais possível, e talvez seja melhor assim. Última vez que estive na fronteira de dois países estrangeiros fui assaltado e fiquei com apenas a roupa do corpo, sendo socorrido pela minha prima que estudava medicina fora, e foi um belo susto. Também, ainda não havia me casado, e de certa forma foi a despedida que eu precisava passar para entender que não dá para enfrentar sozinho a complexidade caótica do mundo, mesmo com boas pernas e muita disposição. Em casa, a trabalho e estudos, sinto meu corpo perdendo aos poucos essa mesma disposição, as pernas, antes tonificadas pelas pedaladas na cidade, afinaram, e a pele, distante do sol abrasivo, ficaram pálidas como a lua às onze da noite. Mas ao menos não tenho e não peguei o vírus (ainda).

(…) Em certo sentido, a pornografia é a forma mais política de ficção, pois aborda como usamos e exploramos uns aos outros, do modo mais urgente em impiedoso. J.G. Ballard. Crash. 2007, Companhia das letras, tradução de José Geraldo Couto.

O mal estar da civilização reside no fato de que nunca fomos tão egoístas. Simplesmente não sabemos sentir a dor do outro. Não sabemos sequer sentir as nossas, e tapamos o sol com a peneira por quanto tempo for possível. Quando falo de minhas excursões eu não preciso nem ir longe para ter um bom exemplo, e desde que fiz minha pesquisa de saúde pelo IBGE no ano passado (uma parceria com o ministério da saúde cujos resultados ainda vão sair), tenho meu coração o tempo todo conectado às necessidades de meus irmãos que vivem a cerca de dois km daqui, nas proximidades da igreja em que me casei em 2018; foi ali que eu conheci, partindo de um ponto neutro e sem vieses como todo pesquisador precisa ter, o Zé e a Maria, e seu estado de saúde, e como eles agenciavam estas necessidades. Isso foi tudo antes da pandemia, o que de certa forma muda tudo — exceto o que torna cada um dos indivíduos que eu conheci especial — pessoas trabalhadoras que precisam lidar com as dificuldades da vida; pessoas de todo tipo, mas ainda assim pessoas. Humanas. Agora todas expostas ao vírus. Se antes havia tantas demandas do sistema de saúde, mas ao menos sem colapso, como que ficou agora sem nem ministro de saúde temos nessa crise, e já fazem mais de 50 dias? E se há algo que caracteriza uma crise, é o fato de que não há para onde correr. Tudo colapsa ao nosso redor e pessoas do pior tipo começam a ascender, usurpando a virtude do povo, se alimentando com o sangue dos fracos. Não apenas a saúde ou a economia — começa a falhar também a segurança pública, a pesquisa e a educação.

Every day I wake up

Hummin’ a song

But I don’t need to run around

I just stay home

And sing a little love song

My love, to myself

If there’s something that you want to hear

You can sing it yourself

Everything is free now — Gillian Welch

Nesse contexto fica fácil entender meu apego pelos games novamente. Em uma espécie de gamenascença, tenho passado mais tempo com eles do que com meus livros. Eles me dão a oportunidade de ser desafiado, de se divertir sem culpa, de encontrar redenção em um tempo que só posso fazer esperar pelo melhor. Eles são a prova de que o tempo é uma ilusão como apontou Einstein tão argutamente, e as várias horas que passo nestas aventuras virtuais acabam muitas vezes sendo a única coisa positiva daquele dia. Ainda que apenas a curto prazo, o que de fato é, mas sem culpa porque com o colapso da normalidade como eu estava acostumado, talvez seja o que eu esteja precisando para se preparar para este novo normal que está por vir.

Entre estes jogos, que me dão essa perspectiva impossível e cuja tradição de certo remonta aos melhores livros de ficção e antes disso aos homens do paleolítico, unidos em torno da fogueira contando histórias um para o outro, estão aqueles que possuem protagonistas femininas fortes, como Gris, a trilogia renovada de Tomb Raider (cuja evolução de uma exploradora insegura para uma Indiana Jones fodona é experimentada através dos três jogos), Hellblade e o meu favorito atualmente, Alien Isolation, protagonizado por ninguém mais ninguém menos que a filha da própria Ripley. Jogar com essas mulheres tem me lembrado a lição essencial que já temos aprendida desde que somos crianças mas que vamos perdendo ao longo do crescimento que é olhar além das etiquetas de gêneros. E que uma garota bate bem forte quando quer.

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