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Introdução à introdução de Simondon

Após um desafio proposto pela minha orientadora, no qual levei quatro semanas, consegui atravessar a introdução deste filósofo francês inovador do séc. XX

INDIVIDUAÇÃO (lat. Individuatio; in. Individuation, fr. Individuation, ai. Individuation; it. Individuazione).

Problema da constituição da individualidade a partir de uma substância ou natureza comum: p. ex., constituição deste homem ou deste animal a partir da substância “homem” ou substância “animal”.

O que Simondon quer questionar quando questiona a individuação como concebida pelos antigos

Nestas primeira páginas Simondon incisivamente aponta o paradoxo causal do estudo da individuação: quando se tentar mapear o processo de individuação apontando qual a substancia primeira a formar o indivíduo, vê-se que o esforço supõe uma substância anterior — transformando assim a individuação, “Problema da constituição da individualidade a partir de uma substância ou natureza comum” em mera ontogênese, fato que já é pressuposto na relação matéria forma.

Entre as duas vias conhecidas que subjazem a discussão da individuação, Simondon vai apontar uma síntese que é a pressuposição de um “principio de individuação anterior à própria individuação”, isto é, um princípio que contraria a si mesmo, pois, como já explicado, a aplicação de um privilégio ontológico à questão se trata, portanto, de uma ontogênese. Simondon não traz novos fatos sobre a discussão mas sim uma nova perspectiva epistemológica sobre a questão: ao invés de buscar aplicar formas individualistas ao processo de individuação, porque não usar do processo de individuação para explicar o indivíduo? meme1

Para além da mera lógica da individuação encontramos um universo completamente inexplorado: o universo da transindividuação

Simondon vai confirmar sua intenção de virada epistemológica quando diz que o primordial a ser considerado é o processo pelo qual o indivíduo se individualiza. Aqui ele introduz termos específicos de análise: desenrolar; regime e modalidade. Nisso se assume a apreensão do indivíduo como realidade relativa — o resultado de considerar a existência de um princípio pré-individuação. A concepção pós moderna do autor ainda se evidenciará quando ele diz que o indivíduo é relativo ao meio e que somente a individuação é ontogenética.

Quando se contrapõe esse pensamento ao pensamento filosófico de Ailton Krenak (2020) denota-se que há muito mais paralelos do que se poderia supor — principalmente à luz do pensamento de outro grande repositório de conhecimento indígena que é o Davi Kopenawa. Em seu livro A Queda do Céu (2016), fica evidente como os mitos, a concepção de mundo e a sociedade indígena são entrelaçados, gerando uma concepção de indivíduo única, e ainda consistente com as afirmações de Simondon.

Em seguida, Simondon introduz a concepção de individuação como devir, isto é, não o modelo proposto pela “substanciação” onde modelo do ser se confunde com o ser, mas devir como propriedade inerente do ser sem o qual o mesmo ficaria para sempre entre estados de pré-individuação e fases posteriores, incompleto — a individuação se daria por fases no ser sem nunca deixarem de ser fases do ser — o processo todo acontecendo através de saltos quânticos, isto é, simultaneamente em nenhum e todos os lugares ao mesmo tempo, quebrando a lei lógica do terceiro excluído. Simondon vai além, e explica que o ser poderia ser considerado, ainda na metáfora da física quântica, como uma nuvem de possibilidades, supersaturado e tenso, além da forma ou da matéria e irredutível à unidade — o ser completo seria algo além da mera soma das partes, algo que ressoa com os conhecimentos xamanísticos e holísticos de várias culturas indígenas. Simondon está a preparar terreno para uma nova concepção ao excluir aquelas que são equivocadas: ontogênese é devir e devir não pode ser simplesmente lógica (entendendo por lógico como um apego irracional á lei do terceiro excluído e ao princípio de identidade); a lógica se aplica, mas apenas a alguns aspectos da questão da individuação.

Teoria da informação, física quântica e cibernética a favor de uma explicação para ontogênese

Simondon indicará uma nova abordagem para a questão da individuação. Aqui ele fará a distinção entre sistemas estáveis e sistemas metaestáveis — e que é essa distinção que permitirá pensar-se a individuação de maneira correta. Segundo ele metaestabilidade é definida pela consideração da energia potencial de um sistema, do potencial de ordem e do aumento da entropia. Em suma, é um estado dinâmico, em oposição àquilo que em mecânica quântica convencionou-se chamar de estado fundamental.

Simondon ainda argumentará que os Antigos consideravam a individuação como sistema estável (cuja saída é sempre um resultado binário: em repouso ou em movimento), mas que à luz das descobertas da física quântica já não sustentam. Para Simondon, a individuação física pode ser explicada através da resolução de um sistema metaestável, e é intenção sua usar a gênese dos cristais como exemplo. Dito isso, ele salientará que a realidade da individuação não se esgotará nessa explicação, e que se deve ter em mente que existem aspectos abertos à interpretação como o devir e a complementaridade dualística da matéria (ele cita o exemplo do comportamento dual da luz).

Em seguida Simondon fala sobre a natureza última da realidade, o que ressoa como a máxima holística de que o todo é mais do que a mera soma da partes — Fritjof Capra bebe desta fonte quando estuda sistemas complexos em seu livro “A Teia da vida”. Segundo ele:

Vim a acreditar que a chave para uma teoria abrangente dos sistemas vivos reside na síntese dessas duas abordagens — o estudo do padrão (ou forma, ordem, qualidade) e o estudo da estrutura (ou substância, matéria, quantidade).

Simondon, que descreve esses fenômenos pelo menos 10 anos antes, vê na física quântica um modelo apropriado de estudar o estado pré-individual da individuação; quanta é outro nome para pacote. Para Simondon os pacotes de energia representados pelos quanta e objetos de estudo da física quântica são modelos ideais da natureza pré-individual; em suas palavras: “há o quântico e o complementar metaestável, que é o verdadeiro pré individual” (SIMONDON, P. 20).

Simondon sugere o estudo da gênese dos cristais como o mais apropriado para conhecer a realidade da individuação, tanto no aspecto macro quanto microfísico. Sua conclusão é a de que a o verdadeiro princípio da individuação é a mediação entre não apenas matéria e forma, mas também energia. Tal realidade é tão subjacente àquilo que se considera realidade da individuação que nem mesmo os conceitos podem se aplicar sem alguma perda. Para Simondon o estudo da gênese dos cristais como analogia para a individuação de todas as coisas físicas nos ajuda a entender a mediação entre as grandezas e como um sistema metaestável pode dar origem a algo; no entanto uma coisa vivente ganha muito mais complexidade. Para ele a metaestabilidade é uma condição da vida — e que é uma metaestabilidade permanente que se consiste o viver.

No alvorecer da cibernética Simondon pensa a informação e a ontologia juntos — e vai além

CIBERNÉTICA (in. Cybernetics). Essa palavra significa propriamente arte do piloto, mas foi usada pelo americano Wiener para designar “o estudo das comunicações e, em particular, das comunicações que exercem controle efetivo, com vistas à construção das máquinas calculadoras”. Em sentido mais geral, a C. é entendida hoje como o estudo de “todas as máquinas possíveis”, independentemente do fato de que algumas delas tenham ou não sido produzidas pelo homem ou pela natureza. E, nesse sentido, oferece o esquema no qual todas as máquinas podem ser ordenadas, relacionadas e compreendidas.

Abbagnano, Nicola (Autor), Ivone Castilho Benedetti (Tradutor). Dicionário de filosofia. WMF Martins Fontes; 6ª edição 2012

Simondon pensou a informação para além da teoria cibernética; ele extrapolou para todos os campos possíveis, como a biologia e psicologia. Ao longo da página 21 desta introdução ele vai explicar como o domínio físico e o domínio do vivente são diferentes entre si embora partam de um mesmo processo de pré-individuação e compartilhem da mesma condição de metaestabilidade. O vivente, como já mencionado, é teatro de uma contínua metaestabilidade — seu sistema informacional possui ele mesmo outro sistema informacional — e sua atividade não está no limite (para parafrasear o autor) como são as coisas não viventes, vazias de uma substância e de uma ressonância interna. Segundo ele: “A ressonância interna é o modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordens diferentes; ela contém um duplo processo de amplificação e de condensação.” P.30

Os estudos de cibernética começaram em 1940 e foram responsáveis, entre outras coisas, por purgar a linguagem de termos ambíguos como alma — trocando por termos performativos. Seu principal teórico, Wiener, a chamou de “o estudo das comunicações e, em particular, das comunicações que exercem controle efetivo, com vistas à construção das máquinas calculadoras” (ABBAGNANO, 2007). Era, então o começo da segunda guerra mundial e novas tecnologias despontavam a todo momento. Supunha-se, então, uma teoria que compreendesse e desse possibilidade de comandar todas as máquinas possíveis, algumas delas com capacidade de aprender enquanto fazem uma tarefa de modo a fazê-la mais eficientemente — o que foi chamado de autômato e feedback, respectivamente. É a essa teoria que Simondon se refere diretamente quando fala de viventes que não poderiam ser reduzidos nem mesmo ao modo de individuação de autômatos. Afinal, como ele vai dizer, uma máquina pode se adaptar e modificar seus modos, mas apenas um vivente pode mudar a si mesmo.

Finalmente, para Simondon, “o indivíduo vivo é sistema de individuação, sistema individuante e sistema individuando-se”, ao passo que o mero indivíduo físico é apenas sistema de individuação; existe para o passado, no limite da aparência exterior. O indivíduo vivente é quem possui interioridade e ressonância interna, além do sistema de informação que permite estabelecer nexos e mudanças internas.

Na página 23 desta introdução Simondon vai estabelecer a hipótese de que a metaestabilidade seja passado de individualidade em individualidade, como acontece na lei de conservação da energia, da física quântica, onde a energia nunca é perdida nem aumentada mas sempre transformada em outra coisa. Nisso Simondon irá pressupor que toda verdadeira relação é aquela que dá origem a uma nova individuação, não porque dois indivíduos se encontraram, no entanto, mas porque dentro do sistema de individuação houve uma ressonância interna que deu possibilidade desta relação — assim, o indivíduo, cuja individuação é sempre relativa, é preciso lembrar, através de uma inquietação, uma “problemática interior”, tem a chance de participar de uma problemática mais vasta que ele mesmo — a carga de metaestabilidade herdada de cada pré-individuação seria o que possibilitaria isso. meme2

Mas, afinal, qual é a bronca de Simondon com a concepção tradicional de individuação?

Simondon concluirá, portanto, que psicologia e a teoria dos coletivos são interligadas, a primeira através de uma abordagem psicofísica e a última através de uma abordagem filosófica. Para conhecer melhor as nuances da teoria, Simondon irá aprofundar conceitos acerca da ontogênese. Segundo ele, as condições nas quais a manifestação psíquica se faz valer precisam ser reavaliadas, a saber:

· A noção da relação adaptativa do indivíduo com o meio

· A noção da relação de cognoscente com objeto conhecido

Em relação à primeira noção, se referir ao meio antes ou durante à individuação é um erro, um anacronismo por assim dizer, pois durante o processo o “meio” é parte da individuação e não pode ser considerado separado.

Em relação ao indivíduo que conhece e o objeto que é conhecido, a relação é surge através de uma problemática, isto é, um conflito, a partir de uma unidade tropística, ou seja do encontro da sensação (dados de informação sobre o objeto por portas sensoriais) com o tropismo, um conceito da biologia que refere-se ao “fenômeno biológico que orienta o crescimento de um organismo, particularmente plantas, em resposta a um estímulo ambiental”. Dito de outro modo, uma unidade tropística é onde estão tanto a sensação como a adaptação ao meio que a sensação aponta.

Simondon irá deixar claro que sua concepção de conhecimento é diferente da pregada pelo hilemorfismo que, dualista, compartimentava o processo de conhecer em categorias a priori e a posteriori, onde a primeira se faria a partir da segunda — ele admite que há uma estrutura anterior que fundamenta o conhecimento erigido em seguinte, mas ele diz que não é causada por uma sensação e sim por uma unidade tropística primitiva, essa que contém o vivente e o mundo em si, ainda indefinida em termos de direção; a percepção e a ciência resolvem os problemas à medida que vão ocorrendo — ao mesmo tempo que delineiam a noção de tempo e de objeto.

Simondon com isso indica que rompe com a concepção dualista de ontogênese da filosofia tradicional para adotar uma posição filosófica transicional ajustada à evolução. “É preciso partir da individuação, do ser apreendido em seu centro segundo a espacialidade e o devir, e não de um indivíduo substancializado diante de um mundo estranho a ele” (P. 25). ideia1 - Hipótese de Gaia ideia2 - Extinção dos dinossauros ideia3 - Pilhagem sistemática do planeta

As consequências desta mudança de concepção são enormes e se aplicam desde ao microscópico ao macroscópico, do quanta às redes sociais

Simondon aqui vai elaborar mais no papel da psicologia, ou psiquismo, dentro da sua filosofia. Segundo ele, o método de apreensão do ser em seu centro pode ser estendido para o campo da emotividade e afetividade, pois que a ponte entre a individuação, o indivíduo e o individuante para o coletivo já está feita. O psiquismo é o resultado de sucessivas individuações, tornando possível a comunicação entre estas instâncias para resolução de tensões (também chamadas de problemáticas). Dito isso, sabe-se que um ser humano é mais do que mera existência física — que ele pode pensar e sentir. Para Simondon a individuação psíquica se refere à evolução do universo mental em um indivíduo. É uma relação com o mundo baseada na percepção, emoção e significação. Ser humano, é ter as capacidades psíquicas que constituem um ser pensante dentro do corpo de um ser vivo.

E é nisso que surge a possibilidade de transcender os próprios limites enquanto mero ser pensante — posto que apenas pensar é adoecer, e que emoção permanente não resolve a afetividade; é quando ele usa pela primeira vez o termo transindividual, a saber: o coletivo que quando resolve a tensão psíquica dá origem ao transindivualismo. Até aqui ele estava ocupado mostrando como desde a pré individuação novas problemáticas eram solucionadas com em novas instâncias, uma sucessiva à outra, e, como um todo, o ser evoluiu nessa individuação, sempre incorrendo em novas tensões. O transindividuo, agora, surgirá quando a problemática da individuação é ela mesma resolvida.

A partir deste ponto haverá uma espécie de recomeço, onde novamente serão mencionados os processos de individuação, com especial atenção para a noção de informação e transducção. Não havendo nova menção ao transindividualismo nessa introdução, é oportuno mencionar que é nesse conceito que se encontra uma ponte ideal entre a filosofia de Simondon e o objeto da minha pesquisa, a saber, a humanidade ao largo da própria humanidade, pois como diz Krenak: “Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania” (Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. P. 13. Companhia das Letras. 2019). Nestas comunidades ignoradas pelo projeto neoliberal, muitas concepções de individuação são perfeitamente explicadas pelo conceito de transindividuação, o assim parecem ser nessa primeira leitura. Mas é o que me vem intuitivamente quando vejo o modo de vida dos povos não-brancos, sua sabedoria, seu respeito pelos mais velhos e sua sabedoria nascida da harmonia com o meio:

Eu não aprendi a pensar as coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade, bebendo o sopro de vida de meus antigos com o pó de yãkoana que me deram. Foi desse modo que me transmitiram também o sopro dos espíritos que agora multiplicam minhas palavras e estendem meu pensamento em todas as direções. Não sou um ancião e ainda sei pouco.

Kopenawa, Davi. A queda do céu . Companhia das Letras.

Como já mencionado, Simondon analisou a individuação à luz da teoria da informação, e aqui ele começa a nuançar o objetivo que ele tinha quando o fez: seu rompimento com os escolásticos, com o cartesianismo e com a forma lógfica que restringia a noção evolutiva e trnasformativa que ele tinha do ser. De fato, muitas das noções mais basilares da filosofia foram atacadas pelos presupostos de Simondon, e nestas páginas ele as revisita uma por uma, trazendo a noção de informação (no lugar da forma dos escolásticos) e transducção (como processso que não se prende à forma lógica tradicional).

Independente da ordem, macro ou micro, uma coisa que nunca muda é a informação. Nesse caso ela é tensão entre dois polos díspares — é através dela que a individuação conhece a si mesma dando origem ao sistema — como um catalisador, sem a informação não há individuação. A informação não é uma coisa dada mas se transforma conforme o estágio de individuação e seus condicionantes. Sem a informação não há transformação, e ela está presente em todos os níveis de individuação,como já mencionado antes. Nem igual nem diferente, muito pelo contrário — transdução em Simondon

Insatisfeito com a concepção lógica de forma (“o princípio do terceiro excluído e o princípio de identidade não se aplicam” P. 28), Simondon revisitou a questão do hilemorfismo e da individuação com a noção de informação em mãos (daí o título do livro). Ele vai criticar a postura estagnante deles, que acreditam que a forma é dada e que sua unica função é ditar à matéria o que ela deve ser; essa função é diametralmente oposta ao dinamismo segundo ele, ademais vai de encontro com as descobertas da física quântica do efeito do observador.

Simondon nos oferece então a interpretação oposta. Em sua teoria, forma e ação da forma na matéria se combinam em uma única noção: informação. Como os ciberneticistas, ele via a informação como uma operação. Sua função não é apenas a de determinar; ela causa uma mutação, provoca mudanças, catalisa processos. A informação passa a ser o fator que aciona o processo de individuação.

Para melhor explicar a natureza transformativa do ser e da individuação Simondon vai introduzir a noção física de transdução (inglês. transduction do latim transducère ‘transferir, transportar, conduzir além’), aqui grafada como Transducção. Essa definição vem encontro com a teoria de Simondon da individuação como devir do ser e não modelo do ser, onde ideias como identidade e relação podem ficar facilmente confusas. Segundo ele “é preciso apreender o ser individuado a partir da individuação, e a individuação a partir do ser pré-individual” (P. 27) transdução

Concluindo

O que está em questão já não é, portanto, o ser individualizado, o ser em existência, mas sim o processo genético real da sua transformação. O trabalho de Simondon abre-se assim a uma nova concepção do tempo como ontogênese, de tal forma que o devir já não é concebido como o devir do ser individualizado, mas sim como o devir da individuação do ser.

Sauvagnargues, A., & Roffe, J. (2012). Crystals and Membranes: Individuation and Temporality. In A. De Boever, A. Murray, & J. Roffe (Eds.), Gilbert Simondon: Being and Technology (pp. 57–70). Edinburgh University Press. Acessado dia 16/11/20

Com a introdução da transdução ficamos mais íntimos do projeto simondoniano de reformulação da metafísica. E é um projeto absolutamente grandioso. Criticando a separação entre forma e substância que jaz nos fundamentos da metafísica e portanto da epistemologia: ele abala o hilemorfismo aristotélico, a noção kantiana de sensibilidade e entendimento do sujeito transcendental “juntamente com cada separação entre matéria e forma que concebe a forma como uma forma eminente, transcendente e explicativa em vez de o conceber ao nível das forças” (Sauvagnargues, A., & Roffe, J. 2012).

Como ele mesmo diz (P. 29), é preciso ir além da noção de terceiro excluído e noção de identidade que não colaboram para uma explicação da origem do ser — por transdução entendemos uma operação pelo qual uma atividade se propaga de próximo em próximo no interior de um domínio. Ele usa a observação da formação dos cristais para exemplificar. É onde encontramos também a aplicação da noção primordial de metaestabilidade, tão cara para a sua filosofia do vir-a-ser. cristal

Imagem de uma pedra do rim por microscópio eletrônico. Se lembre disso quando tiver preguiça de ir na cozinha beber água.

Na natureza poucas coisas são pontiagudas de maneira natural — os planetas são esféricos, as estrelas, e mesmo as órbitas indicam uma força da natureza que prefere que as coisas adquiram estas formas. Uma exceção são os cristais. E são eles os exemplos preferidos de Simondon para mostrar o processo de individuação e a metaestabilidade que permite isso.

Simondon observou o crescimento de um cristal na sua solução. Estudou os parâmetros que determinam a natureza de um cristal: temperatura, pressão, composição química. Ele contemplou fontes antigas que viam a perfeição do cristal como uma ligação entre o orgânico e o inorgânico. Estudou também a refração da luz através de estruturas cristalinas e as implicações destas estruturas para a teoria atômica. Finalmente, alinhou o cristal como paradigma para a sua teoria de individuação

(Kirkpatrick, Graeme; 2013).

“O cristal fornece a imagem mais simples da transdução; a começar por uma semente muito pequena, cresce em todas as direções dentro o seu meio pré-individual, cada camada já formada servindo como o base estruturante do próximo estrato molecular no processo de ser constituído através de uma reticulação amplificadora”. (Sauvagnargues, A., & Roffe, J. 2012). O diamante é também um exemplo de estado em metaestabilidade uma vez que seu estado estável é o grafite.

A metaestabilidade aqui é qualquer estado que não o equilíbrio e que tenha consigo associado uma restrição que impeça a transição imediata deste para o estado mais estável sem alguma perturbação significativa de origem. Em outras palavras é um “equilíbrio duradouro” no “desequilíbrio”, onde só haverá um “escorregão” para a estabilidade mediante influência de outras forças. A estabilidade na física, seja termodinâmica seja alotrópica é apenas uma definição, útil, mas que não resume a totalidade de fenômenos e tipos de estados da matéria na natureza; o hidrogênio e oxigênio podem estar combinados de forma isolada sem se transformarem em água — um estado metaestável que pode ser bem diferente do resultado de um equilíbrio químico que gere a água que conhecemos. Nisso reside a definição de Boa Forma em Simondon (P. 33), isto é, uma outra forma que a estável e que inclua a melhor condição para a transdução.

Tudo na natureza quer economizar energia — e a forma esférica dos planetas é uma prova disso. O estado estável (o equilíbrio termodinâmico) que os antigos e adeptos do hilemorfismo identificaram e associavam à dinâmica da individuação é uma forma intuitiva de pensar a individuação — o que Simondon acredita ser um anacronismo, pois ignora o processo de individuação, mas o toma por acabdo. É preciso, para ele, passar de uma ontologia do ser para uma ontologia do vir-a-ser, uma ontogênese — possível agora graças aos estudos modernos. Junto à teoria da metaestabilidade ele juntará seu estudo de cibernética e teoria da informação — e extrapolará para todos os campos da individuação, desde a pré-individuação à transindividuação, criando uma filosofia próxima de Bergson e Espinosa que consideravam o orgânico, o material e o social como domínios de um mesmo plano .

Simondon, finalmente, vai pensar a noção de forma como informação (P. 33) — pois falar de forma é falar de substância e, portanto, é anacrônica em seu próprio raciocínio. A teoria da informação será útil para explicar a função do germe singular que faz nascer o indivíduo na fase da pre-individuação, (a famosa questão “como pode haver algo onde não havia nada”), mas não será útil para nada além disso — incluindo aí a noção de sinal e mensagem que a teoria da informação traz consigo.

Nessa introdução, no entanto, Simondon não se aprofunda — está mais interessado em dizer a que veio. Tanto é, que nesse último parágrafo (P. 34–35) ele trará à baila a questão da relevância de discutir o ser — e ele usará a famosa distinção aristotélica que todo estudante de primeiro semestre de filosofia ouve e nunca mais esquece: o ser é ou não é. Em seguida ele dirá que é possível conviver com os dois modos de pensamento, lado a lado, e que falar do ser do ponto de vista da transdução, do ser enquanto individuado é falar de modo sobreposto ao ser enquanto ser — e conhecimentos sobrepostos são conhecimentos mais consistentes, contribuindo para uma pluralização da lógica. Finalmente, em um gesto de significativa humildade intelectual, Simondon nos lembra que ao fim das contas é impossível sistematizar uma lógica do ser pré-individual, seja por vias ortodoxas ou não. O que ele intenciona fazer, no entanto, é uma axiomática da individuação do conhecimento — que por sua vez é apenas uma metáfora da individuação. Só podemos conhecer a individuação individuando-nos a nós mesmos.

REFERÊNCIAS

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