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2018 cordoba

La Cienága e a Classe Média como utopia

Eu estive na Argentina pela primeira vez na virada de ano, entre 2017 e 2018. Desde então, muita coisa mudou, comigo perdendo um parente muito próximo, arrumando um emprego e entrando na pós graduação. No âmbito político vimos o país dar uma guinada à direita, a ascensão e queda da Lava Jato, e o estouro de uma Pandemia com potencial para mudar tudo como já havíamos imaginado antes.

A Argentina, por sua vez, elegeu um presidente de esquerda, colocando ambos os países em polos opostos da ideologia. Fora, isso, proporcionalmente, sofrem danos igualmente grandes causados pela doença viral que já tem mais de 50 milhões de casos no mundo todo. Semana passada foi a eleição do presidente dos Estados Unidos, um acontecimento com potencial de mudar as coisas lá e aqui também; no fim deste mês começam as eleições municipais brasileiras.

Quando Lucrecia Martel, a diretora saltense, filmou La Ciénaga (O pântano), em 2001, ela estava acenando a uma corrente de filmes contra culturais que remontavam aos fins dos anos sessenta com produções como a de Luis Buñuel (“O anjo exterminador” de 1962 e “O discreto charme da burguesia” de 1967) bem como com cenas culturais como a Tropicália (“Panis et circenses”, dos Mutantes, em 1968). Sua técnica, no entanto, é muito mais moderna que sua temática, e podem ser encontradas semelhanças desde o cinema contemporâneo chinês como o feito atualmente por Ang Lee, quanto ao moderno cinema mexicano de roteiro não-linear de Alejandro Iñarritu e Guillermo Arriaga.

No caso do filme de Ang Lee, principalmente a produção americana Brokeback Mountain (2005), que venceu quatro prêmios Oscar, entre eles o de melhor diretor, além da temática de amor proibido entre dois caubóis, ou com a violência implícita e que culmina no que é o ápice emocional do filme, temos a fotografia elogiada de Rodrigo Prieto, que traz realismo e poesia a cada cena; foi nesse filme que, por exemplo, um personagem joga ao outro um molho de chaves, mas ao contrário do que nos foi ensinado a esperar, as chaves não são pegas no ar, caem no chão, e aquele acontecimento, que não faz diferença para fins de roteiro, ancora o espectador no mundo real, fazendo com que olhemos a nós mesmos — com o peso de sabermos agora que naquele mundo como neste se assassinam gratuitamente pessoas que escolheram amar pessoas do mesmo sexo.

Essa técnica, ou tecnicismo, aparece em todo o cinema de Lucrecia Martel, e em especial na sua obra de estreia La Ciénaga, com cenas e sons escolhidos para nos ancorar nesta mesma realidade que, em teoria, estamos tentando evitar quando procuramos um filme ou vamos ao cinema. Cenas e sons como aquela da abertura, com a mata ao longe e os adultos bêbados sentados sob um céu carregado de chuva enquanto um cachorro passa. Ou a cena em que temos alguns segundos de um copo meio cheio e mais nada, enquanto aguardamos no suspense para saber se o menino da Tali morreu ou não — o vazio como experiência plena e reveladora, tal como Yasugirô Ozu ensinou desde a década de 50. Na virada do milênio Martel mostra que aprendeu com os mestres ao mesmo tempo em que ilustra questões próprias.

Na Argentina, eu apreendi muito rapidamente quando lá estive, cartões de crédito não são comuns. Ao contrário do Brasil onde cartões são aceitos em quase qualquer lugar já fazem alguns anos, lá tal forma de negócio é vista com ceticismo. Isso se deve às sucessivas crises econômicas e ingerências bancárias que colocaram o povo argentino a desconfiar de qualquer coisa que venha de um banco — inclusive o sistema crediário. Quando o primeiro filme de Martel foi feito, o país enfrentava o auge de uma de suas piores crises há história, o Corralito (Confisco Bancário), e o Governo De La Rúa. O Pântano em que o país estava estagnado era literal e figurado: a piscina da família de Mecha era imunda como um pântano, e ao mesmo tempo, na serra onde as crianças corriam livres, o pântano também estava lá, e uma vaca presa é mostrada já nos primeiros minutos da película. O céu carregado e os adultos bêbados e apáticos contribuem igualmente para a metáfora; a sensação sufocante de calor e mormaço ao longo dos dias, em contraste com a beleza e indolência dos personagens jovens, maravilhosamente dirigidos, dá uma noção clara de que estamos diante de um filme de tema sério e de forma genuinamente bem pensada. E que talvez um pouco de esperança pode ser encontrada se estivermos dispostos a correr o risco.

A história do filme atravessa o cotidiano de dois núcleos familiares, Mecha e Tali, que são primas e amigas. A primeira, vive os dias em uma casa afastada da cidade onde recebe amiúde amigos e parentes. O filho mais velho parece viver com outra mulher, mais velha, mas definitivamente prefere passar os dias com ao lado da mãe e das irmãs — em claro detrimento do próprio relacionamento que deixou na cidade. A adolescente e emotiva Momi, que socorre a irmã junto da empregada doméstica da família, representa a pureza no filme, e uma de suas última falas é que ela foi onde disseram terem visto a Virgem que vem abalando o cotidiano da cidadezinha próxima, mas que não viu nada. De certa forma ela fala pelo expectador que pode ter vindo ver um filme com expectativas de ver uma coisa, mas “não viu nada”. Esse nada é o retrato perfeito de uma sociedade decadente e cansada, que muito pejorativamente se convencionou chamar de “burguesia”. A crítica à burguesia, como mencionado anteriormente não é nova, mas antes cabe perguntar do que se trata e porque ela é (ou parece ser) tão perseguida. Como diz Miriam Leitão em História do Futuro:

(…) Os sociólogos, com razão, dizem que ser classe média é um processo sociológico mais complexo: é um modo de vida, é uma visão de mundo, um conjunto de valores. Pela teoria da estratificação social, explicam, ela é formada por trabalhadores de ocupações não manuais, que vivem de salário e têm estrutura de valores em cujo centro está a educação. Como assalariada, entende que a única herança que deixa para os filhos é a formação. Tem autonomia, independência e capacidade de planejar o futuro. (…) O que os sociólogos explicam é que não basta um padrão de vida, uma capacidade de aquisição de bens. É preciso outros passos, e que eles sejam de longa duração, permitindo a aquisição dos demais atributos, a partir do novo patamar de renda e de ocupações típicas de classe média. E eles podem ser dados ao longo da vida da pessoa ou da de seus filhos.

Leitão, Míriam. História do futuro . Intrínseca. Edição do Kindle.

A Argentina tem a tradição e fama de ser uma das mais escolarizadas do continente (menos de dois por cento de analfabetismo o que a coloca em 35º lugar no mundo). O Brasil, por sua vez possui uma taxa de seis por cento, o que implica em mais de dez milhões de pessoas. Aparte os desafios de escolarizar um país de dimensões continentais, fato é que uma das poucas maneiras confiáveis de famílias melhorarem suas condições de vida é através de melhores empregos e melhores qualificações — e tudo isso só é possível através da busca por educação. Uma melhor escolaridade não implica pertencer à classe média, como diz Leitão, assim como não se define por uma renda em especial. Isso porque a desigualdade social causa distorções arbitrárias e fundamentais. Desigualdades como a do preconceito racial, mas também a desigualdade com que homens e mulheres compartilham, donde as mulheres sempre saem ganhando menos. No filme somos apresentados também à desigualdade étnica, com a emprega sendo a única indígena a frequentar o círculo íntimo da protagonista.

Mujer sin cabeza, por Mark Cousins

Dito isso, uma crítica comum à classe média é seu autocentrismo, sua frivolidade e sua falta de visão. Tais crítica estão presentes em menor ou maior grau no filme de Martel, embora não seja um filme de mera crítica social. Isso porque a profundidade do filme transcende o comentário social embora os tenha muito bem fundamental — poderia ser mesmo um filme do tipo “a classe média se olha no espelho”, um filme com traços de erudição e ao mesmo tempo de popular; seu filme seguinte, Mujer sin cabeza (2008), aprofunda mais essas características autorais ao mesmo tempo que continua utilizando da mesma forma de contar a história. No caso deste filme nem mesmo conseguimos saber se o evento inicial da história de fato aconteceu e ainda assim é em torno dele que gira todo o filme. Diferente de o Pântano, no entanto, a protagonista de Mujer sin cabeza é mais fácil de simpatizar.

Nas cenas finais de O Pantano, vemos as crianças estudando enquanto Tali, a mãe, parece preocupada com algo, e fuma sem parar. Seus planos de viajar à Bolívia para driblar a inflação foram frustrados pelo marido que, se era um bom pai, era conservador no que dizia respeito à liberdade das mulheres. Mecha, sua prima, é uma mãe maravilhosa, mas teme se tornar alcoólatra e não sair mais da cama, como aconteceu com sua mãe — seus rompantes d e raiva, se indolores, ainda buscam atingir sempre a empregada, a quem chama de ingrata nos minutos finais da película — em frente aos filhos, certamente de modo a dar uma lição. O marido dela é definitivamente sem salvação, e ele mesmo admite isso, aceitando de bom grado a expulsão do quarto da esposa. O casamento arruinado não impede que todos fique juntos sob o mesmo teto, o que denota certa ternura familiar que nunca abandona, mesmo nos momento mais tensos.

De certa forma o filme resgata um pouco a beleza e o frescor de viver em tempos difíceis e incertos, quando mostra as crianças se divertindo em um lago com um cano de água; ali não existe, ainda por um momento apenas, segregação por origem, e mesmo os momentos mais modorrentos existe um fio de esperança, uma alegria explosiva ou uma tensão sexual, com potencial para ser virtualmente qualquer coisa, desde uma sugestão de relação incestuosa ou uma briga de festa de carnaval por causa de uma garota.

Nisso o filme pinta o que a “classe média” teria de virtude ou de bom: a liberdade, seja das crianças, seja dos adultos; assim como a franquia com que se tratam uns aos outros; a união em volta da mesa, o humor de ainda estar aqui, suportando-se mutuamente, apesar de tudo; em suma, aquilo que se chama de família e cujas responsabilidades estão bem amparadas sobre os ombros de ambas as mães. Ainda que Tali e Mecha representem polos opostos de progresso, fica claro que são elas quem mantem a coesão familiar ao mesmo tempo que criam condições para o conflito interno dos personagens. Sem a Mecha ou a Tali não haveria crítica social ou comentário político. Mesmo a empregada Mercedez, fugindo sob falso pretexto, deseja ela mesma formar uma família, o que só aconteceu ao conviver com a família de Mecha, por mais desestruturada que fosse.

Referências e Notas

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