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Lendo na Quarentena

Homens renascentistas, estudos culturais e um pouco do cotidiano de um mestrando

Dia 9 de março houve o primeiro dia de aula de mestrado em cultura contemporânea. Além de ter a chance de conhecer excelentes professores, é ali que começa a minha preparação para se tornar um pesquisador de facto, um professor de professores, o que, pelo andar da carruagem (a população diminuindo nos próximos anos, gerando menos demanda de professores) poderá ser, possivelmente, onde se concentrarão os esforços pela qualidade do conhecimento — em oposição à educação on demand que preza apenas a mera quantidade para suprir o mercado.

Lá, eu pude sentir que a atmosfera era propícia a essas aspirações — e poder voltar à sala de aula, à sensação de propósito, de pertencimento, de sinergia, justificou toda a ansiedade que eu sentia. A Aula Inaugural teve dois professores convidados. Uma doutora em literatura de Dourados, MS, Professora Gicelma Chacarrosqui. Pude perceber que o projeto que ela propunha ainda estava em andamento mas que ele era apaixonada pelo que estudava, e isso me fez bem. Apesar de não acompanhar todos os detalhes, adorei saber mais sobre Decolonidades e sobre o nome indígena para América Latina: Abya Yala.

Ela focou basicamente em nos mostrar os estudos sobre saberes vindo de outras fontes que não a Oficial, sobre pensamento periférico e sobre sua própria vivência na fronteira Brasil Paraguai. Ela falou sobre portunhol como uma coisa a ser estudada e logo pensei que se não conseguimos aprender espanhol talvez seja esta a solução para nos comunicarmos com nossos vizinhos, que é adotar um português castelhanizado. Ela apontou dois artistas independentes que meio que habitam este nível de entrelaçamento de culturas, Diegues e Saviero. Inclusive não é portunhol, mas Japará que se chama.

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Professor Dr. Odemar Leotti e eu de preto, ali na porta

Agora, tenho um novo RGA, uma nova identidade estudantil e um novo bloco. Como um círculo que se fecha, estou outra vez no IL (instituto de linguagens) que era onde davam as aulas de filosofia em 2007. O novo RGA no entanto é só um detalhe: sou atrelado ao curso que não acabei ainda, de geografia, e aos amigos que fiz ali. Amigos como o Cristian que encontrei depois da aula, vestindo calças jeans, algo pouco usual. Vi também neste dia a Nemorah e o Victor Gabriel, ambos colaboradores da época do PET, isso tudo depois do fim da aula. Já imaginava que seria essa a minha rotina antes da pandemia mudar tudo.

A segunda aula também foi sensacional mas em outro campo: história. Um professor com camisa tipo havaiana com os botões abertos, tal qual aqueles tios que habitam uns bares aqui no Tijucal, mas que ainda tinha uma estranha dignidade, se apresentou. Se chamava Odemar Leotti. Ele não demorou para explodir minha cabeça (e imagino que de todos os outros também). Usando muitas referências de memória, mas com um jeito despojado e não de intelectual afetado. Ele citou, entre outros, um estudo que apontam cerca 16 gerações de racismo sob cada pessoa negra e que me impressionou bastante.

Ele citou o primeiro TCC dele (“imigrantes” diz minha anotação aqui) e depois o segundo TCC, em formato de livro, talvez com vários autores, Labirinto das Almas. Ele falou de um artigo do Vattimo sobre o pós modernismo cujo objetivo é “quebrar os modos do modernismo de fazer e pensar”. Ele foi até a antiga Grécia e falou de Parmenides, falou do enxotamento dos poetas da Ágora. Citou outro trabalho dele (que título fantástico), “Brasil, do escambo ao esculhambo”, e criticou o bolsonarismo. Eu já estava profundamente apaixonado pela aula, mas haveria mais.

A questão dos saberes de outras lógicas (de onde eu espero extrair meu objeto de estudo, se Deus me permitir) haveria de voltar à baila quando ele citaria os estudos dos índios que não tem palavras para expressar o futuro, ou a espera nem o tempo que virá: tudo o que existe é o presente, e isso esta entranhado no próprio modo de pensar deles. Lúcido, ele disse que linguagem é tudo que temos e somos, e ele usou como ilustração um vídeo sobre um indígena que ensinava isso às crianças, uma aula no mato, usando de tábuas de pedra. Não consegui localizar o vídeo mas que, pelo que entendi, era uma obra de ficção.

Foucault, também, foi muito lembrado. Ele indicou que nas aulas dele seria bom ler a “arqueologia dos saberes” ou algo em relação à genealogia dos conceitos e estruturas de poder. Ele foi enfático em sua luta contra o racismo e o fascismo. Por fim, anotei que ele citou Robert Musil, com o livro “O Homem sem qualidades”, um livro que desejo ler ainda, e ele usa dele para falar de gente sem referência, que é também o contingente humano das cidades e do êxodo rural, sem propósito.

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A Anunciação Pintura de Andrea del Verrocchio e Leonardo da Vinci — óleo sobre painel — 1472 e 1475, com 98.4 × 217 cm de dimensão

Por ser um curso interdisciplinar e prezar por tal, nossa turma tem gente de muitos lugares, do direito, engenharia e jornalismo. Artistas, meio geógrafos e filósofos. Nossa primeira aula de Estudos Culturais nos deu a oportunidade de nos apresentarmos e fiquei feliz em conhecer a diversidade dos aluno de pós graduação que estava ali. Pairava no ar então a suspeita de suspensão das aulas, mas não senti desânimo por parte dos professores; ninguém poderia dizer que não viu isso vindo. Entre as muitas boas recomendações colhidas naquela tarde estava a de que devemos nos abrir ao interdisciplinar — sair da cômoda caixinha que nossos conhecimentos estabelecidos nos colocam. Também ganhei uma tarefa, a primeira, de ler um capítulo de um livro.

Em relação à interdisciplinaridade logo me vi pensando em que eu me limitava, com frequência. Além de exatas, que sempre, sempre foi um problema, eu tenho uma certa birra de que? Não soube definir em um primeiro momento. No entanto, que caminhos podemos trilhar quando se busca conhecer um novo campo de saber e a partir disso, relacionar eles com aquilo que já se domina? Me lembrei então que houve um período onde os conhecimentos ainda estavam se estabelecendo, o Renascimento, e que nele houve um grande gênio, talvez o maior, ao menos em curiosidade, e que nunca respeitou nenhuma fronteira para saber ou não saber as coisas. Sim, falo de Da Vinci, Leonardo da Vinci.

No livro Leonardo, Walter Isaacson (que já escreveu sobre Steve Jobs, Einstein e Benjamin Franklin) traçará um perfil muito satisfatório do gênio renascentista; ele mesmo explica que escreveu o livro porquê:

“Leonardo da Vinci é o exemplo definitivo do tema central de minhas biografias anteriores: como a habilidade de conectar disciplinas — artes e ciências, humanidades e tecnologia — é a chave para a inovação, imaginação e genialidade” (Isaacson, Walter. Leonardo da Vinci — Intrínseca).

Embora não exista uma receita pronta, gênios como o de Da Vinci se guiavam, ainda que com uma voracidade similar a uma força da natureza, através de diretrizes simples, como a curiosidade. Seu comportamento, por mais excêntrico que fora, seguia um padrão, que Isaacson soube definir muito bem. Em uma entrevista à Forbes ele ousa mesmo dizer quais as características mais úteis do gênio para um executivo contemporâneo. Como um pesquisador em construção, acho que podem ser úteis também, e seguem mais ou menos como ele diz:

No livro, em um subcapítulo intitulado Aprendendo com Leonardo, ele entrará em detalhes sobre esta e outras características; por motivos de copyright não posso colocar tudo aqui, mas parafraseando, no espírito deste ensaio de refletir sobre o que cria novas ideias interdisciplinares no mundo hiperespecializado que vivemos, eu diria que com o primeiro item ele se refere à curiosidade gigantesca pela qual Leonardo Da Vinci era conhecido; alguém que buscava conhecer absolutamente tudo quase sempre sem nenhum interesse especial nisso; isso muitas vezes é mal visto quando nos tornamos adultos, e mesmo nas crianças costumamos colocar alguns limites — muitas vezes desestimulando-as de querer saber qualquer coisa. Quem já conheceu uma criança sem curiosidade sabe como é uma visão triste e desanimadora.

Mas mais ainda, em um pesquisador esta é uma perícia imprescindível. As perguntas são honradas e nunca é demais querer saber; prêmios como o IgNobel e o framboesa de ouro são comumente tidos como prêmios do fracasso, mas de certa forma celebram a ousadia e a curiosidade humana e podem ser fonte de uma verdade mais profunda como mostrou aquela palestra do TED sobre um cientista que se importava com os pássaros batendo nos vidros do prédio. Isaacsson vai dizer: “Ser incansável e aleatoriamente curioso sobre tudo que nos cerca é algo que todos podemos nos esforçar para fazer a cada segundo da vida, exatamente como ele fez. Busque o conhecimento pelo simples prazer da busca. Nem todo conhecimento precisa ser útil; às vezes ele pode ser perseguido por puro prazer”

Faça com que seu alcance seja maior do que sua compreensão. Esse conselho visa aqueles momentos em que pensamos que nada mais pode ser criado, e que nada mais é necessário. É famosa aquela má previsão de um professor de filosofia e astronomia de Londres que achava impossível viajarmos em um trem porque, afinal, morreríamos sufocados por causa da velocidade. Se um viajante do tempo desavisado, vindo de 1830 aparecesse em uma sala de aula hoje, certamente acharia que estamos empregando feitiçaria com nossas mini telas nas mãos. As mais incríveis invenções nascem de uma necessidade e por mais disparatadas que pareçam, são o coração do tempo que vivemos. Muitas vezes a inovação se parece com invencionice, uma pura fantasia — e isso explica porque, afinal, gostamos tanto desse gênero de ficção até hoje. Antes mesmo de saber ser possível voar Da Vinci inventava asas e paraquedas que de fato funcionavam. Sua genialidade era do tipo sandbox, completamente teórica — embora ele se esforçasse para testar todas as suas teorias.

(…) Existem certos problemas que jamais resolveremos. Aprenda por quê. Alimente sua fantasia. (…) Assim como borrava os limites entre a ciência e a arte, Leonardo fazia o mesmo com o que separa a realidade da fantasia. Ele pode não ter produzido máquinas voadoras, mas sua imaginação voou muito alto. Crie para você, não só para os patronos.

Isaacson, Walter. Leonardo da Vinci — Intrínseca

Como pesquisadores temos ao nosso lado centenas de anos de dados acumulados de pesquisadores que vieram antes de nós — isso pode ser intimidador, mas também excitante. Não devemos ter medo do fracasso — a teoria e o método científico têm o fracasso como parte de sua lógica, daí a importância da falibilidade e dos experimentos. Boa ciência é feita com investimento, mas bons cientistas e pesquisadores nunca deixam de sonhar e imaginar. É de Einstein o conhecido mote de que “imaginação é mais importante que inteligência”, e isso faz bastante sentido quando se trata de pesquisa.

Outro conselho para criatividade em tempos de crise, segundo Isaacson é que devemos buscar a beleza, anda que só nós a vejamos. Um dos modos que ele sugere, por mais estranho que pareça, é que aprendamos a procrastinar da maneira certa. Procrastinar têm sido considerada um mal absolutamente comum nestes dias, e decerto é assim por algum motivo. Observe, no entanto que procrastinar da maneira correta, segundo seu estudo da vida de Da Vinci, era o que em psicologia seria a incubação, ou um dos quatro estágios da criatividade. Segundo o mesmo artigo:

(…) Incubação é definida como um processo de recombinação inconsciente de elementos do pensamento que foram estimulados através do trabalho consciente em um determinado momento, resultando em ideias novas em algum momento posterior. A incubação está relacionada à intuição e ao insight, na medida em que é a parte inconsciente de um processo pelo qual uma intuição pode tornar-se validada como insight. A incubação aumenta substancialmente as chances de solução de um problema, e beneficia-se de longos períodos de incubação com baixas cargas de trabalho cognitivo.

A ideia aqui é que saibamos que é melhor procrastinar quando não for possível acabar um trabalho ainda imperfeito. “Faça com que o perfeito seja inimigo do bom.” é saber postergar a entrega de uma obra ou um trabalho até que se saiba que ele atingiu sua plenitude; ainda segundo Isaacson, é uma regra difícil de se aplicar no dia-a-dia mas que é o diferencial sob uma ótica de longo prazo. Em tempos de tanta cobrança de produtividade já se tornou comum um pensamento de que “é melhor fazer uma coisa meia-boca do que não fazer nada”, e até mesmo “fazer qualquer coisa porque quase ninguém liga mesmo”, um pensamento bastante perigoso, senão desanimador, pois qual seria a reação possível se, por acaso, alguém se interessasse? Por esta, entre outras é dever do pesquisador saber se equilibrar entre a produtividade exigida pelo meio acadêmico ao mesmo tempo que alimenta sua aspiração à uma obra-prima e verdadeiramente bem cuidada.

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Tempos de isolamento social e Pandemia já vão para duas semanas e ainda temos que lidar com figuras públicas negacionistas. Parece que cada área da ciência tem seu próprio terraplanista para se preocupar, mas em termos civilizacionais isso se parece um tanto quanto pior — a Pandemia é real e se temos viéses cognitivos que nos impedem de entender a escala do problema, ninguém pode negar o que vê quando vê as escala ascendente de cada vez mais infectados.

Como passar este tempo em casa? Muitas coisas foram ditas a respeito, mas com duas semanas sem fazer nada, alguns porta-vozes do apocalipse começam a aparecer. A internet têm destas coisas — e quase todos eles tem mais de sessenta, são brancos e milionários. Não se deixe intimidar. Nada vai voltar a ser como antes e estes senhores só estão entrando na fase de negação, o primeiro estágio do luto — luto pelo capitalismo tardio que se for, já vai tarde.

Eu não preciso dizer o quanto estou ansioso por aproveitar cada um dos 1440 minutos que este dia me traz; claro, ficar em casa por obrigação não é a mesma coisa que ficar em casa por escolha — mas se esse é o único modo de maratonar algumas das coisas que podem ser maratonadas, escrever umas cartas que precisam ser escritas e jogado uns jogos que estavam na fila, então que assim seja. Ainda preciso aprender a lidar com a falta de espaço, sim, e o exercício físico que para mim sempre foi um motivo para sair para a rua, agora se resume a usar um aplicativo de exercícios com cadeiras? Meditação se tornou acessível, para não dizer inevitável, novamente. Criar rotinas rígidas para fazer as coisas (entre elas ver notícias de baby boomers tentando acabar com o mundo) pode também ser uma boa.

Claro, o tédio sempre pode vir. Eu sempre defendi o tédio como possibilidade de criação; assim como a preguiça pode ser uma maneira de prevenir um monte de coisa errada que fazemos. Mas esse tempo confinado pode ser muito mais. Minha esposa sempre se volta para o jardim. Nisso ela ressoa Montaigne, que dizia que “Se você ficar deprimido ou entediado ao se aposentar, recomendava ele, trate simplesmente de olhar ao seu redor e se interessar pela diversidade e pelo esplendor das coisas. A salvação está em dar toda a atenção à natureza”. (Como viver: ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta, Bakewell, Sarah).

Isso se relaciona com o conselho para meditação também. Hoje temos muito aplicativos para iniciantes, mas nada supera o conselho de Pascal de que se aprendêssemos a ficar em paz com nossos pensamentos em uma sala vazia muitos problemas do mundo seriam evitados. Eu, com quase nove anos de meditação ainda acho isso realmente difícil. Para isso me volto às questões mais importantes, mas também para as respostas famosas da filosofia: “‘Como alcançar a paz de espírito?’. Sobre esta última questão, a recomendação de Plutarco era a mesma de Sêneca: concentre-se naquilo que está presente à sua frente, prestando-lhe toda a atenção” (idem). Talvez seja isso que podemos aprender com toda essa crise, afinal. A prestar atenção naquilo que está bem na nossa frente.

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