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Minhas 10 melhores leituras de 2019

Mais uma lista da internet


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1 — A morte do pai

Escrever é mais destruir do que criar. Rimbaud sabia disso melhor que ninguém. Digno de nota não é que ele tenha chegado tão inacreditavelmente jovem a esse insight, mas que tenha aplicado isso em sua própria vida. Para Rimbaud, tudo dizia respeito à liberdade, tanto na escrita como na vida, e só porque a liberdade tinha um papel dominante é que ele podia deixar a escrita em segundo plano, ou talvez até tivesse que deixar a escrita em segundo plano, pois ela também se tornou para ele um limite que deveria ser destruído. Liberdade é igual a destruição mais movimento.

Knausgård, Karl Ove. A morte do pai (Minha luta) . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Comecei a ler em maio e terminei em agosto. Escrevendo em um gênero comumente identificado como autoficção, o autor nos concede uma voo panorâmico para dentro de sua vida, o que nem sempre é agradável ou fácil; por mera idiossincrasia ou gosto pessoal, eu escolhi este livro entre outros porque ele resolve, através de dilemas e paradoxos pessoais, questões que me acompanham desde criança. Mais ainda, a voz do autor ressoa com a minha própria quando se contempla a razão da própria alma humana, suas divergências, suas complexidades, suas afinidades. As ideias que originam estes escritos, assim como o gênero de autoficção que é usado para definir o livro, é de uma simplicidade inacreditável — o que explica grande parte do que dizem sobre o livro quando dizem que é banal, solipsista e cansativo, afinal ele não fala de nada além de si mesmo e de sua perspectiva pessoal em relação aos acontecimentos de sua vida. Mas para mim pareceu mais do que isso. O livro é um esforço grandioso em direção à devassidão de si mesmo, e se existem tantos outros bons exemplos deste tipo de escrita — eu não vou tergiversar dizendo que este livro é melhor e pronto. Ele foi o melhor para mim no momento que vivo neste ano, ano em que completou-se um ano da morte do Vitor Paniagua, do ano em que estive chocado com o resultado da eleição e desejando às vezes estar muito longe daqui. Também, havendo acabado de ler a Trilogia Millenium do Stieg Larsson — além das sacadas filosóficas originais sobre literatura e arte em geral — este norueguês acabou virando uma espécie de um modelo masculino para mim, catalisado em uma miríade de outros papéis, assimilando o que desse para assimilar com a vida do homem contemporâneo que vive em uma sociedade ocidental e com uma perspectiva materialista (o último parágrafo do livro sendo um exemplo de como uma filosofia sem Deus funcionaria).

Ainda que hajam outros cinco livros para acabar esta série (sendo que apenas outros quatro foram publicados pela companhia das letras em um posicionamento que parece ser definitivo), o recado de Knausgård foi dado e recebido. O tipo de narração quase fenomenológica, a busca da verdade, sempre fragmentada em memórias, planos para o futuro e sensações intensas, sejam de solidão, de ternura ou angústia, a coragem que ele teve para fazer o que fez é admirável e digna de artistas verdadeiros. Me inspirou e continua inspirando continuamente a dizer a verdade, não importa através de qual meio e qual disfarce eu tenha a mão.


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2 — Um artista do mundo flutuante

"É difícil apreciar a beleza de um mundo quando se duvida de sua própria validade."

“Quando eu ficar velho, quando olhar o passado e perceber que devotei minha vida a captar a beleza única desse mundo, acredito que ficarei bem satisfeito. E nenhum homem me fará acreditar que desperdicei meu tempo.”

Ishiguro, Kazuo. Um artista do mundo flutuante . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Este livro do brilhante Ishiguro, um japonês que cresceu na Inglaterra, me pegou a partir do momento em que o abri. Lê-lo era como ler a mim mesmo porque era um livro incrível, onírico, leve e ao mesmo tempo atemporal. Ao seu fim, fiquei assombrado com a dimensão da cultura japonesa, mas me fez ao mesmo tempo olhar a mim mesmo, e me fez pensar na questão, que é a origem de toda ética, a questão de como viver bem e morrer sem mágoas.

Eu já lera um livro dele antes, O gigante enterrado, que tem a forma de fantasia medieval, e esperava encontrar algo mais fantástico nesta leitura, qualquer coisa como fantasmas, transmissão de pensamentos e prestidigitação; o que encontrei foi um narrativa tranquila e descompromissada (compassada como a d’O Gigante Enterrado, mas diferente, oriental), em primeira pessoa, e com o Japão pós-guerra como cenário; encontrei aquilo que poderia ser o alter-ego do autor mas também, por que não, o meu alter-ego: O Artista, que nos conta de sua própria voz, de uma forma tão recatada quanto íntima, as dificuldades de casar sua filha após uma negociação fracassada. Mas não só isso, ele vai e volta no tempo, ilustrando sua formação como artista, a relação entre discípulo e mestre e entre os próprios discípulos. A trama em si não é a cheia de reviravoltas (outra vez, se assemelhando ao Gigante enterrado e outra vez sendo diferente) senão aquelas que já eram esperadas: a filha finalmente se casa, o amigo doente morre e a vida continua, apesar de tudo. À sua maneira, Ishiguro nos mostra como as reviravoltas em geral não estão nos aspectos externos de nossas vidas, mas na nova luz com que vemos alguns acontecimentos e naquilo que tínhamos como absolutamente certos.

Li este livro entre agosto e outubro deste ano e já quero ler mais deste incrível romancista, uma vez que os filmes baseados em Vestígios do dia e Não me abandone jamais eu já vi. Sua leitura culminou com meu aniversário e vislumbrar o otimismo do protagonista nas suas últimas páginas inspira meu próprio otimismo: uma perspectiva balanceada e saudável do mundo, dos jovens, dos acontecimentos e de si mesmo, onde, apesar de todas as dificuldades encontramos nosso lugar e onde podemos apreciar sem medo o passado, mesmo em todas as suas contradições. Como era de se esperar deste autor, ainda existem algumas áreas cinzas e incompletas — como era ilustrada pela metáfora da névoa do esquecimento do livro O gigante enterrado — áreas que suscitam questões que sabemos muito bem, nunca trarão respostas satisfatórias. Ao seu modo o autor nos levanta questões filosóficas sobre o mundo e sobre o que podemos realmente apreender do mundo, coisas como o verdadeiro alcance de nossa influencia, quase sempre superestimada ou subestimada mas raramente vista como realmente é: a conexão entre nossas verdades espirituais mais profundas e o próprio mundo, mundo este onde flutuamos e somos constantemente levados pelo vento dos acontecimentos — como um balão de ar quente em que, na nossa identificação com o balão, não conseguimos ver que o tempo todo éramos nós o próprio vento.


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3 — O jogo da amarelinha

Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que às vezes aparecem em celeiros, cozinhas ou esconderijos, e cujo uso ninguém mais é capaz de explicar. Vaidade de acreditar que compreendemos as obras do tempo: ele enterra seus mortos e guarda as chaves. Só em sonhos, na poesia, na brincadeira — acender uma vela, andar com ela pelo corredor — nos aproximamos, às vezes, do que fomos antes de ser isto que sabe lá se somos.

Cortázar, Julio. O jogo da amarelinha . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Eu conheci Cortázar então em minha adolescência, quando já planejava ler meus livros acumulados mas ainda sem saber como; Bestiário, eu lembro, foi uma experiência intensa. Na faculdade já, andando nas prateleiras da biblioteca na seção de literatura latino americana eu topei com um livro todo misterioso: capa preta, um símbolo amarelo, páginas muito manuseadas. Folheando logo vi que ele era mais interessante do que imaginava. Levei comigo, comecei a ler mas deixei de lado. Era uma época de muitas descobertas e poesia, em uma vida muito aproximada do lirismo de Oliveira, o protagonista, mas as leituras da faculdade acabaram por me afastar de outras leituras e devolvi o livro. Em 2017 eu decidi conhecer a Argentina e em uma preparação prévia passei a estudar a cultura e a geografia do país, e comecei pelo que mais me atraía que era a literatura. Me aproximei de Borges em uma feliz união do útil ao agradável e também de Cortázar, primeiro com uma releitura de Bestiário e depois do delicioso História de Cronópio e Famas. Este ano saiu uma nova edição de O Jogo de amarelinha que veio coroar estas leituras feitas à época. Com tradução de um amigo pessoal de Cortázar (Eric Nepomuceno), eu me senti à vontade para me entregar à leitura de capítulos incríveis e desafiadores como aquele em que duas histórias são contadas concomitantemente, parágrafo cruzando com parágrafo. Não à tôa Cortázar chamou esta obra de seu Antiromance, nada nele é convencional, desde sua estrutura, com suas várias formas de ler, até sua essência, com a história de um portenho na Europa e depois em Buenos Aires em busca de um sentido em uma miríade de sentidos possíveis. Já planejo ler outra vez dado o fato de que é um livro que se lê de muitas maneiras. Mais ainda, é um objeto apaixonante e inspirador, vivo e incandescente sob certo aspecto, Cortázar está ali em cada linha e em cada palavra. Minha pouca leitura de Camus encontrou no espírito que move esta história uma grande aliado, e em tempos de tantas ideologias e certezas absolutas, antintelectualismo e burrice ostentação, observar como se movem Oliveira, Maga, o Clube da Serpente, Traveler e Talita, transpirando poesia, inquietude, curiosidade, enfim, vida, mesmo em face de um mundo frio e sem sentido após uma guerra que envolveu o mundo todo, é para mim a medida daquilo que somos e podemos aspirar ser. É uma ponte para minhas experiências de retiro na Serra do Rio de Janeiro assim como os mochilões feitos na Bolívia, Peru ou Pará, e é também a essência destas mesmas buscas, tão diferentes e já tão distantes.


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4 — Ideias para adiar o fim do mundo

Quantos perceberam que essas estratégias só tinham como propósito adiar o fim do mundo? Eu não inventei isso, mas me alimento da resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo. Nesse livro e em As veias abertas da América Latina, ele mostra como os povos do Caribe, da América Central, da Guatemala, dos Andes e do resto da América do Sul tinham convicção do equívoco que era a civilização.

Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como “cabeça da terra”, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra. Não a terra como um sítio, mas como esse lugar que todos compartilhamos, e do qual nós, os Krenak, nos sentimos cada vez mais desraigados — desse lugar que para nós sempre foi sagrado, mas que percebemos que nossos vizinhos têm quase vergonha de admitir que pode ser visto assim.

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Culturas Indígenas podem e têm filosofia. E ainda que suas filosofias sejam extremamente práticas, elas nunca foram mais relevantes do que hoje. Este livrinho, pequeno em tamanho mas grande em essência, foi o pontapé inicial da minha tese de mestrado, e me abriu caminho para novas leituras de Milton Santos e Davi Kopenawa entre outros. Ailton Krenak ficou conhecido, eu soube depois, na sua emocionante defesa dos povos por ocasião da elaboração da constituição de 88 e têm neste livro uma condensação de seu pensamento através de algumas palestras elaboradas nos últimos anos. De um verdadeiro brasileiro para outro, ele nos lembra da tragédia de Mariana e da obscura causalidade que envolve a colonização deste país, o lento extermínio dos povos originários e dos descendentes de escravos; uma mancha terrível na nossa história que nenhuma prosperidade com ares neoliberais pode apagar: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida”. Um livro absolutamente necessário e inspirador.


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5 — O leitor como metáfora

Viver, então, é viajar através do livro do mundo; e ler, abrindo caminho através das páginas de um livro, é viver, viajar pelo próprio mundo. Uma comunicação oral existe quase que exclusivamente no presente do ouvinte; um texto escrito ocupa toda a extensão do tempo do leitor.

O livro é muitas coisas. Como um repositório de memória, um meio de transcender os limites de tempo e espaço, um local para reflexão e criatividade, um arquivo da nossa experiência e da dos outros, uma fonte de iluminação, felicidade e, às vezes, consolo, uma crônica de eventos passados, presentes e futuros, um espelho, uma companhia, um professor, uma invocação dos mortos, um divertimento, o livro em suas várias encarnações, da placa de barro à página eletrônica, tem servido há bastante tempo como metáfora para muitos de nossos conceitos e realizações essenciais.

Manguel, Alberto. O leitor como metáfora. Edições Sesc SP. Edição do Kindle.

Eu descobri este livro com um vídeo do canal de vídeo ensaio Quadro em Branco e não tenho vergonha de admitir que não foi só em direção a este produto que ele me empurrou. Diferentemente de alguns acadêmicos que parecem não levar nada a sério que não esteja em um livro empoeirado impossível de ler sem duas faculdades e uma pós graduação, eu uso de qualquer meio que estiver a mão para me inteirar de meus interesses. Filosofia, eu soubera muito cedo, seria um campo difícil de acompanhar e se manter interessado se não fosse constantemente atualizado, validado e comparado com outros campos; os canais de vídeo-ensaio, embora um pouco pedantes, um pouco resumidos, um pouco desnecessários até, são muito inspiradores amiúde. Principalmente quando são feitos por aficionados e envolvem cultura pop, como este. Claro, continuo lendo teoria, mas se é de vídeos que se traduz filosofia hoje em dia, então também quero conhecer essa linguagem.

Alberto Manguel é um intelectual argentino, e foi uma leitura muito especial para mim neste interregno em que me encontrei este ano entre o trancamento da faculdade por causa de trabalho e a volta aos estudos para entrar no mestrado. Manguel é erudito e sua linguagem é acadêmica, com muitas referências, notas de rodapé e ilustrações, mas tudo ali tem um propósito e seu leitor nunca se sente enganado. Sua tese neste trabalho é apontar aspectos do Leitor ao longo da história da leitura (de fato, ele tem um livro chamado História da Leitura que decerto aprofundará sua tese). Assim, ele vai falar do leitor como viajante pelo mundo, como isolado estudioso e como traça de livros. Cada uma destas metáforas aprofunda nossa relação com os livros e a leitura e nos ilumina em nossos próprios modos de encarar a leitura. Sou um leitor viajante? Ou me encerro no meu quarto e me isolo do mundo? Talvez eu seja como Traça e simplesmente leia como quem respira, esperando encontrar em algum momento a saciedade sempre perseguida. Provavelmente somos um pouco de cada e podemos, através desta elucidação, explorar melhor o aspecto de leitor que quisermos desenvolver. Para quem se identifica como leitor e relaciona sua própria trajetória com a leitura como eu faço, este livro é realmente especial.


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6 — No sufoco

Era como se aquele momento fosse durar pra sempre. E que pra você ter amor só precisa arriscar sua vida. Que pra ser salvo você tem que chegar à beira da morte.

(…) Imagine alguém tão burro que não sabe que esperança é só uma fase que passa. Que achava que era possível fazer uma coisa, qualquer coisa, que durasse pra sempre.

Palahniuk, Chuck. No sufoco . Leya. Edição do Kindle.

O melhor livro do autor de Clube da Luta, cujo autor é comumente acusado de contar sempre as mesmas histórias, e onde se encontra o seguinte início de resenha no goodreads: “Estou ficando cansado de Chuck Palahniuk. É o quinto livro que leio dele e não fiquei nem um pouquinho apreensivo”. Acho graça. Se alguém lê 5 livros seus e depois reclama é por um de duas razões: superestimou a capacidade de criação do autor ou o que é pior, é mimado, e reclama após ter lido centenas e centenas de páginas de um mesmo autor.

Ainda assim entendo quem faz estas acusações. Os livros dele são sempre (ao menos me parecem, tenho 3 na conta até agora) irreverentes, iconoclastas e transgressivos. Mais ainda, ele aponta saídas inevitáveis para extravasar as emoções do homem comum em uma era de hipervigilância, algoritmos de bancos e corporações e destruição sistemática de sonhos. Seu clube da luta foi identificado com uma cultura masculina insurgente, mas já se sabe que era uma metáfora para própria busca de sentido, a violência inclusa. Ler No sufoco nos traz a mesma sensação pois nos aproxima de indivíduos quebrados, paranoicos, dilacerados e confusos só para nos mostrar nossa própria confusão e paranoia. A amizade entre o protagonista e o Denny é um dos destaques que me veem à memória. A mãe complicada do protagonista é em si mesma uma peça. O tema do vício em sexo do protagonista é o menos chocante dos detalhes da trama; se você gostou de Coringa vai gostar de tudo aqui.


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7 — Matadouro 5 & Cama de Gato

“Todas as verdades que estou prestes a contar são mentiras descaradas.” (…) Quem for incapaz de entender como uma religião benéfica pode ser baseada em mentiras também não vai entender este livro.

As pessoas falam qualquer coisa só para manter funcionando as cordas vocais, assim elas estarão prontas para quando realmente tiverem algo significativo para falar.

Vonnegut, Kurt. Cama de gato . Editora Aleph. Edição do Kindle.

Eu fiquei um pouco indeciso entre qual livro do Vonnegut eu gostei mais este ano, Matadouro 5 ou Cama de Gato e sem a pretensão de realmente escolher, uma vez que uma experiência Vonnegut sempre é uma experiência Vonnegut, eu fico com Cama de Gato pelo cenário apocalíptico, pela sinceridade amarga do narrador e pelo próprio narrador, pela reflexão acerca da ciência e do culto à personalidade. A invenção de uma religião completamente original, o Bokononismo e a constante reflexão acerca da morte, seja para o passado, seja do mundo inteiro, que permeiam este livro são meus destaques. É um livro curto, de leitura simples e vocabulário direto mas que demorei bastante para ler porque eu não queria acabar. Concluí o livro com a sensação crescente de que Vonnegut, que provavelmente é lido nas escolas americanas na mesma época em que lemos o Auto da Compadecida aqui, é uma espécie de voz da consciência dos americanos, um marco da ética e um farol do homem comum, seja pela sua honestidade, seja pela sua história. Quem se interessa por literatura norte-americana, e mais ainda, pelo norte-americano em si, tirará um proveito a mais desta deliciosa tragicomédia.


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8 — Ficções & O aleph

Melhor dizendo: não concebem que o espaço perdure no tempo. A percepção de uma fumaça no horizonte, em seguida do campo incendiado, em seguida do cigarro mal apagado que produziu a queimada, é considerada um exemplo de associação de idéias (sic).

Disso caberia deduzir que não há ciências em Tlön — nem sequer raciocínios. A verdade paradoxal é que elas existem em número quase incontável. Com as filosofias acontece o que acontece com os substantivos no hemisfério boreal.

Borges, Jorge Luis. Ficções . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Borges é um gigante, e ler um conto dele sequer é só uma comprovação disso. O que se fazem com filmes de milhões de dólares investidos em efeitos especiais ele faz com palavras — Matrix before it was cool. Sendo bastante sincero, a imaginação deste homem era colossal, e sua habilidade de comportar em literatura esta mesma imaginação é incrivelmente interessante. Merece todos os elogios que recebe e o lugar que ocupa na literatura mundial; ainda assim ele não é exatamente um passeio. Alguns de seus conceitos são de difícil apreensão e mesmo as narrativas aparentemente lineares são cercadas de mistério. Destaco aqui o Jardim das veredas que se bifurcam e As ruínas circulares.

Ficções é a soma de dois livros de contos, um de 1941 e outro de 1944. O Aleph é de 1949 e é uma obra única. Em comum eu vi os temas de mistério, de extraordinário, de livros, inventados ou não, bibliotecas e filosofias. Poderia ser ficção científica mas é Borges, o que é infinitamente melhor; pois como disse Cioran em uma carta a um amigo em 1976:

“Profundidade e erudição não andam juntas. (…) É aqui que aparece a superioridade de Borges, sedutor como nenhum outro, que conseguiu dar uma gota de impalpável, de etéreo, de finura a qualquer coisa, mesmo ao raciocínio mais intrincado. Porque nele tudo é transfigurado pelo jogo, por uma dança de achados fulgurantes e de sofismas deliciosos”.

E ainda:

“Nem na França ou na Inglaterra vi alguém que tivesse uma curiosidade comparável à de Borges, uma curiosidade exacerbada até a mania, até o vício, digo realmente vício porque, em matéria de arte e de reflexão, tudo o que não se transforma em entusiasmo um pouco perverso é superficial, logo irreal. (Cioran, Emil. Exercícios de admiração: Ensaios e perfis . Rocco Digital. Edição do Kindle).

Para Cioran alguns espíritos são maiores que a cultura que os originou. Como Borges, ele mesmo se interessou em se abrir a novas leituras, filosofias e culturas após constatar quão pequeno era para si seu quinhão. Como Cioran, agora vejo, eu nunca me prendi meramente à cultura de minha própria origem mas sempre busquei algo que fosse melhor, mais sofisticado ainda que a custos de uma originalidade cada vez mais rara; assim, me interessei precocemente por música clássica, filosofia ou o movimento beatnik. Assim me interessei mesmo por literatura e por cinema, e na inocência e na presunção de pureza, sempre me via, feliz, voltando às minhas origens, seja com a redescoberta do modernismo, seja com redescoberta do cinema brasileiro. As recompensas pelas maiores alturas sempre são as melhores paisagens no fim das contas.


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9 — Deuses Americanos

— Não só não existem finais felizes — retrucou a deusa — , como tampouco existem finais.

Gaiman, Neil. Deuses americanos (American Gods) . Intrínseca. Edição do Kindle.

Serei sincero: li este livro porque eu pensava em ser romancista. Neil Gaiman é um excelente romancista e mais do que isso, é um romancista que fala sobre escrever constantemente. Na introdução ele diz: “Minha narrativa acompanhava a jornada de Shadow, e, quando eu não sabia onde ele havia se enfiado, escrevia uma história sobre a “Vinda à América”, e, quando acabava, já tinha descoberto o paradeiro de Shadow, então voltava para ele. Queria escrever duas mil palavras por dia, mas me dava por satisfeito com mil”. Fiquei estupefato. Com mil palavras por dia, Neil? Gente como a gente esse moço, eu escrevo mil palavras por dia só para meu diário (bem, nem todos os dias). Enfim, mesmo que eu não quisesse realmente ser um escritor (que no caso eu sou pois estou escrevendo agora, mas me refiro mesmo ao ofício do romancista) eu sabia que poderia começar a ler o livro sem medo de decepção, o homem escreve divinamente.

Eu conheço o trabalho dele ainda do Sandman, cuja saga li inteira nos anos 2009, mas estava envolvido com o também excelente Mitologia nórdica dele no fim do ano passado quando comecei a assistir (voltei na verdade, para a segunda temporada) a série livremente inspirada neste livro, American Gods, que está na Prime vídeo. Não foi a primeira vez que um produto audiovisual me levou para o livro que lhe deu origem, mas foi a primeira vez que uma série fez isso. Eu gosto da série, acho muito bonita, no cenário e nos efeitos visuais e possui também incríveis atuações, mas o suspense do fim da temporada me incomodou. Juntando a fome com a vontade de comer, comecei o deuses americanos “edição preferida do autor”, de mais de 400 páginas, e não me arrependi.


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10 — A saga do bruxo Geralt de rívia.

Fechando com chave de ouro (pelo menos para um fã de fantasia como eu) eu tenho que mencionar as leituras dos cinco primeiros livros da saga do bruxo Geralt de rívia do polonês Sapkowsky, iniciada em dezembro de 2018 com o livro de contos O Último Desejo (Torre das andorinhas, aí vou eu).

Eu sei que não se trata de alta literatura, e que um acadêmico cuja cultura de origem não foi suficiente para um espírito tão rico, que exigiu uma corajosa extrapolação para novos ares — enfim, que uma pessoa tão estudada não deveria ler qualquer livro de fantasia. Não quando temos J. R.R. Tolkien, George Martin, P. José Farmer. Ainda assim, parafraseando um personagem do livro Batismo de fogo, o anão Zoltan: “f*da-se”. Literatura é diversão e se não estiver divertido então alguma coisa está errada.

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