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Kafka post no blog - criado com midjourney

Minhas 10 melhores leituras de 2020

Parte II


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O apanhador no campo de centeio — J. D. Salinger

(…) Um lado da minha cabeça — o direito — é cheio de milhões de cabelinhos grisalhos. Isso desde que eu era menino. E mesmo assim eu ainda me comporto às vezes como se tivesse uns doze anos de idade. Todo mundo fala isso, especialmente o meu pai. E um pouco é verdade, também, mas não é tudo verdade. O pessoal sempre pensa que uma coisa é tudo verdade. Estou pouco me lixando, mas de vez em quando eu fico de saco cheio das pessoas me dizerem pra deixar de ser criança. Às vezes eu me comporto como se fosse bem mais velho do que eu sou — verdade mesmo — , mas aí ninguém percebe. O pessoal nunca percebe coisíssima nenhuma.

Salinger, J. D.. O apanhador no campo de centeio

Muito já foi dito sobre este livro, de modo que serei breve: é um livro fantástico, perfeito no sentido mais profundo da palavra, e você deveria lê-lo, mesmo que seja para dizer que não gostou ou não entendeu o hype, que dura já mais de cinquenta anos. O que eu posso fazer, ainda que de maneira torta e incomum, é falar sobre como Holden existe através dos tempos e em como eu vejo ele tanto em mim como em pessoas que são de todo quadradas ou phony , para usar uma gíria que o Holden mesmo iria preferir.

Isso porque a juventude, assim como um feitiço, tem um tempo determinado para surgir e para desaparecer, e poucos souberam entender o conflito que pode existir sob as aparências de felicidade e liberdade, força e beleza que a juventude possui. De certa forma O Apanhador… inventou a adolescência, pois antes disso, tudo o que existia era a pessoa adulta ou que está em vias de tornar-se uma. A atenção e o estudo das nuances de cada idade, em especial a adolescência é uma coisa bem recente. E repito, nos anos cinquenta, no pós guerra, quando foi lançado este livro, foi a primeira vez que essa fase ganhou o protagonismo na arte de maneira geral.

E eu gostaria de ser o cara que teve a vida revirada ao ler esse livro — e de certa forma dizer isso seria dizer que eu tenho síndrome de peter pan, dada a idade que possuo — pois dizem muitas vezes que este livro tem o potencial máximo entre leitores dos treze aos vinte e cinco, de modo que estou dez anos atrasado. No entanto entendo, com o distanciamento e a experiência de várias más fortunas ao longo da vida, o que há de tão atraente neste livro. Aliás, o livro que teve esse efeito em mim foi “On the road” do Jack Kerouac, lido por voltas dos 25.

Primeira coisa que notei ao fechar o livro, na última página, era que eu queria recomeçar. E isso, para mim, é muito raro. Eu tenho uma política muito estrita com releituras e gosto de pensar que lembro muito bem dos livros para não ter que repeti-los, dando lugar, portanto, para outro na fila interminável de livros para ler. Mas esse livro não é um livro comum, ele subjuga o tempo e cria um laço de retroalimentação que parece ser sem costuras, liso. É de uma prosa imaculada, perfeita, e nos enfeitiça. É de um poder tal que já tentaram associa-lo a psicopatas conhecidos, como o cara que matou o John Lennon, mas gosto de pensar que foi só uma coincidência, e, assim como os livros da série minha luta do Knausgard, que já foram lidos por quase todos os habitantes do país onde foi escrito, o livro do J. D. Salinger, foi, guardadas as devidas proporções, igualmente um sucesso. E se manteve assim por mais de cinquenta anos, o que aumenta e muito as chances de ser lido por todo tipo de pessoa.

Outra coisa que percebi é que é um livro bom para iniciar alguém no estudo do inglês. Eu mesmo comecei a ler ele no original acompanhado da tradução do Galindo pela editora todavia (a outra tradução eu ainda não li) e pude perceber algumas escolhas, mas também que é um livro de uma simplicidade tal que pode muito bem ser usado para treinar leitura de ficção em inglês. Não que isso seja necessário, pois a tradução do Galindo está excelente. Quero apenas indicar a possibilidade, embora não seja uma boa ideia se a leitura se tornar trabalhosa, o que para mim acabou acontecendo, queria ler logo — o que eu fiz, pois é um livro relativamente curto.

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Uma pesquisa por phony no google imagens inclui até mesmo o holden com seu chapéu de caçador

Esse livro é um dos poucos desta lista que não é de ficção contemporânea. Isso porque eu tenho um apreço especial pelos clássicos, e também porque estou passando eu mesmo por uma fase de phonizição, ficando cada dia que passa mais distante da criança ou do jovem sonhador que fui. De nada adianta repetir as coisas que me faziam feliz quando era mais jovem se me acompanha a sensação de deslumbramento e desilusão e que acabou, de certa forma, me estabilizando em uma vida que é desejável ou que obedeça a normas que antes me atraiam. Como disse um amigo uma vez, todo velho é conservador — eles adquirem as coisas e à medida que fazem isso, vão se apegando e procurando cuidar para não descer novamente ao nível anterior. Mas não é só isso que está acontecendo, e pouco tem a ver com relação ao livro.

Fato é que Holden é como meu pai. Melhor dizendo, meu pai me lembra o Holden, ou pelo menos é o que Holden haveria de haver se tornado se um dia se tornasse pai. Holden é antissocial. É sensível e ao mesmo tempo tapado. É um cara comum, mas com um grande coração e sente falta enorme do irmão mais novo. Holden aguenta muita cachaça e sempre quebra a cara com suas namoradas. Enfim, Holden só não quer que aconteça mal nenhum àqueles que ainda possuem alguma inocência. Meu pai uma vez, eu ainda era criança, me mostrou um pouco do seu lado Holden quando recebeu seus amigos na área de casa, conversou animadamente com eles e quando eles se foram — eu estava numa fase que não saia da barra da calça dele e por isso vi coisa toda — cuspiu no chão e reclamou deles, dizendo palavrões — ele sempre disse muitos palavrões. No momento eu não entendi nada e acho que até perguntei para ele — mas vocês não são amigos? Como Holden, ele odeia muitas coisas.

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Quando leio estas ficções eu fico pensando no quanto meus pais eram eles mesmos revoltados antes de se tornarem o que são hoje (e como eu sou responsável pelo desencanto deles em grande parte). E como essas coisas vão passando de geração em geração, uma sempre reclamando da outra, com a essência sempre mudando tão pouco. É o que Holden nos mostra, de certa forma, e se por um lado basta juntar uma sequência de más escolhas e um protagonista atormentado para reconstruir uma história semelhante à de O Apanhador…, fica claro, à medida que lemos este livro, que apenas Salinger saberia contar a história da maneira como ela foi contada.


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Respiração Artificial — Ricardo Piglia

(…) Somos adestrados durante um tempo excessivamente longo na estupidez, e no fim ela se transforma numa segunda natureza, dizia Marcelo, diz-me Renzi. A primeira coisa que pensamos está sempre errada, dizia, é um reflexo condicionado.

Piglia, Ricardo. Respiração Artificial

Como já foi mencionado no texto anterior, esse ano eu fiquei bastante próximo de Ricardo Piglia. Ler seus diários foi como se insuflasse ânimo novo na minha vida, especialmente na parte em que ele começa a escrever seu primeiro livro de contos, seu isolamento, o uso de anfetaminas, o prospecto da fome. Enfim todos os sinais do artista idealista e sofredor ali estampados, e não eram exagero. Por isso, senão por outra coisa, eu quis muito ler algo seu que não fossem os diários, e acabei escolhendo Respiração artificial, publicado originalmente em 1980. Peguei a edição em brochura já que não encontrei ele em versão eletrônica.

Livros de papel, longe de mim desprezar, são uma camada a mais na experiência total de leitura; seu papel e seu perfume trazem conotações únicas ao ato de ler que um kindle da vida não poderá nunca reproduzir. Ainda assim, eu só procuro a versão em papel de um livro sob três condições: Não existe versão eletrônica; é um livro que usa de diagramas e figuras demais ou, finalmente, é história em quadrinho. Em relação a este último estou disposto a mudar de opinião se for possível abrir o kindle em um monitor grande ou na TV.

Este livro, que não é grande em número de páginas, me pegou de jeito. Se provou uma leitura complexa e robusta, quase intragável. Isso porque envolvia muitas referências à história argentina e a personalidades políticas de então. Sua primeira parte é a mais complicada, porque é toda composta por cartas e cuja conexão entre si está a cargo do leitor descobrir. Ao longo das cartas uma pequena narração em primeira pessoa onde aparece um censor que lê as cartas todas e tenta descobrir um código secreto que as conecta — uma sinalização clara para o que acontecia na ditadura. Apesar das dificuldades, é a parte mais interessante do livro, e que prova o brilhantismo do autor — foi nela que li uma carta emocionante de uma irmã mais nova e também a carta que relata o dia em que foi o livro quem leu o leitor.

(…) Já faz algum tempo que estou com uma espécie de sensação de que estou ficando um meio neura. Por exemplo: passo o dia contando os carros com placa ímpar que passam em frente de casa. É mais forte que eu. Me atrai. Não consigo resistir: de repente começo a olhar pela janela e a contar quantos carros com placa ímpar passam pela frente de casa a cada cinco minutos (passam, uns vinte, em média). Você não acha esquisito? Mande uma resposta sobre isso porque é muito importante. Não posso passar a vida contando carros com placa ímpar e lendo Sigmund Freud (entendo doze e meio por cento do que leio). (Estou lendo Psicopatologia da vida, cotidiana: é um barato. Você leu? Por outro lado, é bem difícil. Essa história dos carros com placa ímpar é particularmente psicopatológica, você não acha?) O pior é que você sabe o que meu pai quer que eu estude? Escrivania. Há horas em que acho que ele é um monstro, insuportável, um horror etc. Ele vive como se estivéssemos na época do primeiro Triunvirato (acho até que ele ia achar que eles eram modernos demais). Escrivania!

Ricardo Piglia. Respiração Artificial Trad. Helosia Jahn. Companhia das letras, 2010

A carta da irmã mais nova me comoveu porque em tudo tinha aquele frescor e energia de uma menina inteligente, como quando lemos os diários de Anne Frank. É apenas algumas páginas do romance mas foi o suficiente para me por a sonhar. Também a parte em que alguém relata que via as coisas acontecerem na sua frente da mesma maneira que estava acontecendo no livro nas suas mãos foi incrível (relatei ele noutro texto, do mês passado). Respiração artificial é um livro sobre ler e é um livro sobre a argentina, aquilo que torna aquele país e seus habitantes únicos, e é também uma peça de resistência contra a ditadura. Também, é um tour de force intelectual, principalmente na segunda parte, quando o a história se torna mais tradicional, com apenas alguns momentos onde o narrador passa de um para o outro.

E neste sentido, a essência do romance está no diálogo e na comunicação, uma necessidade profunda de todos nós — seja por cartas, seja por conversa cara a cara, e que é o mote do autor para destrinchar suas teorias filosóficas e literárias. Sim, porque o romance nesta segunda parte é também uma aula de literatura argentina e de filosofia, com direito a citação de Wittgenstein e comentários sobre a vida cotidiana de James Joyce. Nesta segunda parte, na cidade Concórdia na província de Entre rios, o protagonista Renzi (sim, é o mesmo alter ego presente nos diários), enquanto espera pelo tio, acompanhado de um imigrante polonês que era amigo dele, vai andando pela cidade, conhecendo outros habitantes que eram amigos de seu tio, e conversando com eles travam-se as discussões sobre literatura e filosofia já mencionadas.

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Um gaúcho cordobes

E como era na juventude do autor, segundo seus diários, ali está Renzi. De bar em bar, conversando por horas e horas sobre suas obsessões, suas paixões e suas teorias. Esse momento, que antes havia visto com tal grandiosidade somente em A Montanha Mágica do Thomas Mann quando um certo professor como o Settembrini entrava em cena e ansiava por conquistar a alma do jovem Hans Castorp, é em si de uma riqueza maravilhosa. São passagens que ensinam ao mesmo tempo que entretêm, e condensam opiniões ou estudos que o autor levou anos para concluir — alguns comentários sobre literatura ali, na forma de diálogo entre um estudante da capital e um poeta do interior em um bar, continham anotações que li no diário do Piglia há vinte anos da publicação do livro.

A literatura argentina, começo a suspeitar, é a monumentização da imaginação. Foi ali que aconteceu a institucionalização da inspiração, e seus autores — mesmo os mais díspares como Piglia e Borges, têm na aplicação de imaginação de maneira essencial e abrangente, suas características principais. Não que outros romances de outros países não tenham isso, pois é impossível criar sem uma gota de inspiração que seja, mas no que eu li de autores argentinos, isso parece ser mais do que um mero detalhe, senão sua própria essência.


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Outro Amor — Karl Ove Knausgård

Durante toda a minha vida adulta eu mantive distância dos outros, foi a maneira que encontrei para me virar, porque me sinto tão incrivelmente próximo das pessoas nos meus pensamentos e nas minhas emoções que elas não precisam fazer mais do que me rejeitar por um instante que seja para que uma tempestade se arme dentro de mim.

Knausgård, Karl Ove. Um outro amor (Minha luta).

(Eu já resenhei este livro em abril de 2020 — o que se segue é uma outra aproximação do que aprendi lendo esse livro.)

Esse livro, como o primeiro, é para mim, um passaporte para a vida adulta — ou uma vida “mais” adulta do que a que supomos que pudéssemos ter. Também, como eu já mencionei antes, é um exercício de alteridade muito grande para alguém como eu, sem filhos, vivendo no Brasil, casado e sem pets, entrar na pele de um escritor norueguês com duas filhas e que tenta se realizar como artista. Como disse uma resenha engraçada na amazon, é muito problema de primeiro mundo, como se o homem fosse incapaz de ser feliz; problemas exclusivos a uma porção privilegiada da humanidade, mas que ele descreve com tanto talento que nos faz criar empatia por ele. Eu não acho que seja só isso, no entanto.

Isso porque, mesmo que sejam apenas problemas mentais que eles possam ter em algum momento (em oposição aos problemas de “terceiro mundo”), ainda assim são problemas relevantes — aquele tipo de raciocínio me faz pensar naquelas pessoas que desconsideram problemas exclusivamente mentais como “problemas de verdade”. Podemos discutir muito sobre aquilo que o Boaventura chama de epistemologias do norte e epistemologias do sul, e como uma outrora potência colonial como a Inglaterra possui riquezas roubadas do mundo todo em seus museus, mas não há espaço para discutir ou negar que depressão e ansiedade podem e são problemas sérios tanto naqueles países como nesse.

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Eu tenho uma amiga virtual que mora na Suécia. Ela é fotografa e encontrou uma alma gêmea por lá e se casou. Sou muito feliz por ela, e desde que a conheço (2007?) eu mesmo sempre, vez ou outra, pensei se não seria feliz vivendo lá. Passei a admirar o frio, o Hygge, a cultura e arte que é feita lá. Outro amigo (e que eu conheci há 18 anos atrás na minha cidade do interior, o que é bem surpreendente) mora na Inglaterra, e também ele parece estar bem satisfeito. Não me deixo ansiar por essas ideias, no entanto, e parece um clichê já, que o brasileiro queira viver em qualquer lugar que não seja o Brasil. De certa forma é uma discussão do tipo oito ou oitenta com pouco espaço para acordo do tipo, “se ao menos”.

Amadurecer, no entanto, é perder ilusões. Se eu hoje tenho verdadeira paúra de calor, daqueles em que começamos a suar parados, à sombra, imagino que o frio em excesso seria muito pior por causa do meu condicionamento físico (ou a falta dele), e se tem uma única coisa boa em uma noite de neve deve ser a mesma que a de uma noite em que chove muito — o silêncio. Talvez eu só quisesse me mudar para o frio para ir contra os meus pais, ou talvez eu só contra o país. No fim das contas percebo que achar um lugar menos quente deveria ser suficiente. A cultura escandinava, no entanto, é muito boa mesmo. Vou dar uns exemplos, sabendo que muito ficará de fora, como o movimento Dogma 95 e a série de terror O Reino de Lars Von Trier.

Séries, sim, porque aqui em casa consumimos muito disto: este ano vimos as quatro temporadas de The Bridge, ou Bron/Broen (2011). Um suspense e thriller policial maravilhoso, que começa quando há um crime na ponte que liga a Suécia e a Dinamarca, a ponte do Øresund. Metade de um corpo em um país e metade no outro. A dupla que se faz então, entre a sueca Saga Noren e o dinamarquês Martin Rohde é bem especial, pois ilustra algumas das diferenças culturais e linguísticas dos dois países. A detetive sueca, no entanto, é a protagonista, e ao longo das outras temporadas nos aprofundamos mais ainda em sua vida. Para mim que lera os livros Stieg Larsson, foi fácil entrar no clima sombrio do Scandi noir como foi chamado a onda de boas séries de crimes feitas por lá. Por sinal, assistimos também The Killing (falta só a última temporada para fechar), a versão americana e que é baseada em uma série original dinamarquesa chamada Forbrydelsen.

Outra série, desta vez sem crimes brutais, que vimos este ano (e que tem na Netflix) foi Borgen. É um thriller político com a Sidse Knudsen como a Primeira Ministra da Dinamarca Birgitte Nyborg. É impossível não se apaixonar por sua honestidade e idealismo, e que vê sua vida virar de cabeça para baixo quando é eleita já na primeira temporada. O sistema político, assim como a vida cotidiana daqueles que habitam o centro de tomada de decisão, é brilhantemente mostrada; é onde também está a imprensa, que aqui tem uma perspectiva privilegiada, de dentro. A política da Dinamarca é muito diferente do Brasil, e não apenas porque se trata de parlamentarismo. As intrigas, no entanto, estão lá, e prometem trazer muito entretenimento, mas foi o desenvolvimento dos personagens o que mais me cativou. A boa notícia é que vão fazer uma nova temporada daqui um ou dois anos.

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Bispo Edvard Vérgerus (interpretado por Jan Malmsjö) — um tartufo realmente assustador

Do mesmo criador de Borgen, Adam Price, assistimos “Os caminhos do senhor” (também na Netflix) que conta a história de um pastor da igreja protestante daquele país, e que conta com a atuação maravilhosa de Lars Mikkelsen no papel de Johannes (ele também fez um papel pequeno em Borgen e um grande em Forbrydelsen). Vemos aqui um homem de poder espiritual muito grande, e que por vezes é consumido por ele, me lembrando o vilão terrível do filme Fanny e Alexander do Bergman, o Bispo Vérgerus. Andando por caminhos misteriosos, vemos como ele age na sua família, preferindo um filho outro, tendo casos e bebendo em excesso. Ao mesmo tempo vemos como ele é amado pelos mesmos filhos e esposa, e como ele luta contra este lado escuro dele. É uma série de grande carga emocional e com pitadas bem dosadas de misticismo religioso. E também é bem dinamarquesa. Tem um episódio, inclusive, em que a esposa do Johannes, Elisabeth, que dá aula de literatura, começa a falar de autoficção e cita Knausgard.

Finalmente, um dos meus artistas mais ouvidos na vida, foi Jens Lekman, e eu me orgulho de ter visto muitíssimos filmes do Bergman. Ainda por cima, meu trabalho de conclusão de curso foi em Kierkegaard, um dos primeiros filósofos existencialistas, senão um precursor desta escola de filosofia, e que era dinamarquês. Minha esposa, aliás, costuma creditar a ele minha conversão ao cristianismo e ao catolicismo (eu espero que a influência dele fique só nisso porque ele teve uma vida realmente dura). Eu e ela, enfim, passamos muitas horas assistindo séries de televisão juntos, uma coisa que nos uniu mais do que outros meios de entretenimento; e mesmo que eu viva tentando emplacar uma leitura conjunta com ela, abro mão destes planos facilmente se encontramos uma série ou filme que nos cative. Afinal, se o objetivo é ser feliz, podemos ser pragmáticos e aceitar qualquer coisa que nos aproxime, pois é daí que surge nossa felicidade. Tenho certeza, aliás, que Knausgard e a Linda aprovariam.


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Sobre os ossos dos mortos — Olga Tokarczuk

É preciso manter os olhos e ouvidos abertos, associar os fatos, enxergar a semelhança lá onde outros veem uma completa discrepância, lembrar que certos acontecimentos ocorrem em vários níveis ou, em outras palavras: muitos incidentes são aspectos do mesmo acontecimento. E que o mundo é uma grande rede, é um todo único, e não existe nada que esteja isolado. Cada fragmento do mundo, até o menor deles, está interligado com os outros através de um complexo cosmos de correspondências, onde uma mente simplória dificilmente penetra. Funciona assim, como um carro japonês.

Tokarczuk, Olga. Sobre os ossos dos mortos.

Esse livro é realmente sensacional — embora há quem tenha se decepcionado. Provavelmente a carga de ser um autor laureado com o Nobel crie expectativas. Também, há quem espere uma defesa mais radical e panfletária do vegetarianismo, o que não é feito — a personagem principal e narradora, no entanto, é sim uma defensora ativa desta causa. Entendo, porém, que a autora está comprometida em contar a história mais do que simplesmente provar um ponto, no que ela é habilíssima, mas que de certa forma a torna também uma escritora comum. Outros autores como Safran Foer, que definitivamente escreveram sobre a causa, embora um romancista, não usou de ficção pra falar de direito animal ou de mudanças climáticas, embora tenha escrito já vários livros sobre o assunto — no que fica claro a diferença de meios para se atingir um objetivo, assim como as limitações do romance.

Eu comecei a ler este livro pelo fim de janeiro, mas com as coisas saindo dos trilhos como saíram eu acabei deixando de lado, para retomar só em setembro, quando fazia o curso de literatura contemporânea, após haver lido já o Enterre seus mortos (resenhado no texto anterior a esse). Foi nessa época que eu comecei a fazer o mestrado, só para ser interrompido, como todo mundo, pela pandemia. Apesar das aulas online, eu encontrei na prosa de Sobre os Ossos… e no posicionamento da autora muito do respaldo que eu buscava para meus estudos de Cultura Contemporânea, e li, portanto, com grande avidez o que a história da Janina Dusheiko tinha para contar. Mesmo sabendo que era apenas uma história fictícia.

SPOOR (Pokot) by Agnieszka Holland - Trailer (filme baseado no livro)

Como se trata de um thriller de suspense, com mortes misteriosas e uma revelação no final, não vou me aprofundar, evitando estragar a surpresa de um livro lançado no ano passado, e vou direto para o que me fascinou mais nesse livro, que são os personagens e o cenário. Nada de jovens ou heróis musculosos, aqui temos um eremita e uma velha professora que vivem no ermo, em uma floresta nas proximidades da fronteira com a Tchéquia. A floresta, que é tremendamente fria no inverno, guarda seus segredos, e, após a morte de um conhecido caçador da região por engasgamento, passa a abrigar também o temor de que os animais estejam finalmente se vingando de todo tratamento cruel que tem sido infligido pelos homens por séculos.

Enquanto olhava para o planalto e sua paisagem em branco e preto, entendi que a tristeza é uma palavra importante na definição do mundo. Constitui a base de tudo, é o quinto elemento, a quintessência.

Sobre os ossos dos mortos (Tokarczuk, Olga)

A narradora, Janina Dusheiko, é incrível. Uma protagonista maravilhosa, com seus pensamentos, idiossincrasias e aflições tão bem descritas, e com proporções tão verossímeis que posso dizer que ela é mais real para mim do que muitas pessoas que conheci na vida real. Se parece com aquela tia rabugenta, mas que é um doce quando se conhece melhor — mas muito mais do que isso, ela é vegetariana, protetora dos animais, astróloga e grande admiradora de Blake, o poeta e pintor romântico. Também, já foi engenheira, já foi casada e agora vive só, completamente só, desde que sumiram suas cadelas, a quem ela era tão devotada.

Nas primeiras linhas ela já dá um solavanco no leitor, falando que na idade dela era bom dormir com os pés limpos para o caso de uma ambulância ter que vir busca-la. E o livro é recheado de pensamentos do tipo, irônicos, engraçados, profundos e depressivos, às vezes tudo ao mesmo tempo. É ao mesmo tempo divertido e profundo, e trata de temas como ecologia e conservação ambiental, ainda que de forma romantizada, e, para mim, está dentro da “pauta” atual da “humanidade”, que é encontrar uma maneira de viver no planeta sem que ele seja completamente devastado. A publicação deste livro, assim como a premiação que ela recebeu, já são por si só é um sinal de que há uma mensagem maior envolvida, sendo ela mesma uma artista que critica o governo de extrema direita que foi eleito na Polônia. Mais ou menos o contrário do que acontece aqui, portanto, quando a fundação palmares, retirando o nome de personalidades influentes e importantes na sociedade da sua lista pública, alega que só vai elogiar quem já morreu. Como dizem, depois de morto todo mundo é bonzinho.

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Novembro de 2020 foi o mês mais quente já registrado em todo o planeta

Eu realmente gostei muito deste livro, e acho que teve um hype merecido. Ela fez um livro infantil, já lançado aqui e que tem sido também muito elogiado. A Polônia, culturalmente, é muito rica, e como parte da Europa oriental, é uma fonte de resistência ao imperialismo ocidental, ou ao menos um contraponto a ele. Enquanto escrevo, vejo aqui que ainda estão acontecendo os protestos das mulheres contra a as leis extremamente restritivas contra o aborto, de outubro, e as fotos são incríveis. As mulheres polonesas, por sinal, já foram muito elogiadas em outro livro que li esse ano, Esboço, de Rachel Cusk, onde ela diz “as mulheres na Polônia são extremamente politizadas; as minhas plateias eram noventa por cento femininas, e todas muito cheias de opiniões”. E ainda, “(…) elas têm uma seriedade que eu invejei, como se não tivessem, como se nunca tivessem sido distraídas da realidade das próprias vidas”. Isso no Capítulo V, deste livro. “Sobre os ossos dos mortos” pode ser considerado primeiro thriller ecológico, e não apenas porque é assunto da moda, no entanto — os méritos da autora, nos fazendo pensar, e erguendo um espelho onde nos vemos, nem sempre sobre a melhor luz, é duradouro e revigorante.


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Segredos — Domenico Starnone

Uma coisa é a pessoa amada, outra é a pessoa real que, enquanto a amamos, nunca vemos realmente. Quanto tempo, disse a mim mesmo, desperdiçamos nas relações amorosas. Nesses anos inventei com felicidade uma pessoa. Entrei com grande gozo no corpo de uma aquarela que fiz com cores suaves, e tenho no outro quarto uma filha real de um ano, que foi parida de uma ficção minha.

Starnone, Domenico. Segredos

Mais um livro que li por forças das circunstâncias, felizes, diga-se de passagem, primeiro porque foi indicado pelo Fernando de Barros e Silva no momento cabeção do podcast Foro de Teresina (episódio 110) e segundo porque era parte da lista de livros que foram escolhidos para o curso Lendo Nosso Tempo de Agosto. De todos os livros que li este ano e que compõe esta plêiade de autores, este foi o mais tradicional na forma, junto talvez com O Apanhador de Salinger, mas este foi escrito entre 1940 e 1950, enquanto Segredos foi publicado ano passado.

É um livro de linguagem simples, sem muitos arranjos ou experimentos, uma forma direta de contar uma história e que o faz com excelentes resultados. Pode ser considerada também uma prosa bem masculina, no modo Hemingway masculino de ser, que é uma prosa direta e que mesmo nas divagações é também bastante conciso. Livros como este dão fôlego ao formato e mostram que não é preciso apelar para firulas complexas e pós-modernas para contar uma história cativante. Mesmo o título do romance vai direto ao ponto.

Fui para a cama, tornei a pensar naquelas confidências de tantos anos atrás. Jornada encerrada, vou dizer a ele: experimento bem-sucedido, a vida acabou, estamos protegidos. E acrescentarei, para zombar dele: não é a pedagogia do afeto que nos melhora, mas a pedagogia do assombro.

Starnone, Domenico. Segredos (p. 124). Todavia. Edição do Kindle.

Dito isso, é importante salientar que não é apenas porque o romance seja simples em sua estrutura e fórmula que ele é um livro raso. Com um tema como o de segredos e mentiras, tão presentes na vida de cada ser humano sobre a terra desde o tempo das cavernas, esse livro é à sua maneira ambicioso e grandioso — e uma leitura que pede nova releitura, ou ao menos leitura de outros do mesmo autor. Tenho cá comigo, engatilhado, Laços, lançado antes desse, pronto para ser lido.

O livro conta a história de Pietro e Teresa. Um professor e a outra estudante brilhante (e ex-aluna dele) e que têm, por algum tempo, um tórrido romance, onde acontecem confidências íntimas, que nunca chegamos a conhecer, mas que nos deixa imaginar que se trata de uma coisa absolutamente reprimível. Apesar disso, ou talvez por causa disso, ambos se separam, sem brigas, e seguem suas vidas.

Todos temos segredos, aliás, e no que eles se diferem de mentiras, eu creio, é que o primeiro é passivo e o segundo é ativo — todo segredo é uma mentira latente, não contada. Segredos cobram um preço muito caro para serem mantidos, e podem consumir quem os detêm — e nunca retribuindo de volta o que tomaram, mesmo quando confessos. Ainda assim, sempre que pude, confiei meus segredos a alguém de confiança, de tal forma que pelo menos os mais absurdos eu já tirei de mim — inclusive através da escrita neste meio. Ter alguém em quem se possa confiar, afinal, é uma das maiores coisas que podemos fazer por nós mesmos, seja ele seu terapeuta, seu melhor amigo ou um grande amor.

Mas o interessante deste livro não é somente o segredo que une estas duas personagens, mas o desenvolvimento destas mesmas personagens, um exercício que Starnone cumpre à perfeição, nos levando por todas as fases principais da vida de Pietro, até seus oitenta anos. Uma das personagens que vão surgir e que mudam a vida do Pietro é a Nádia, uma professora de matemática. O romance irá conter três vozes dentro dele, a predominante sendo a do Pietro, um professor batalhador na Itália dos anos setenta e que consegue alguma proeminência após a publicação de um livro sobre pedagogia. A segunda é a voz da filha de Pietro e a terceira é a voz de Teresa, comentando a narração de Pietro e de sua filha. Nádia não se expressa em nenhum momento, mas nem por isso deixa de ser uma personagem importante e complexo.

O perspectivismo é aqui é utilizado sem grandes consequências, mas existe um quê de Rashomon quando vemos que a versão da história de Pietro é contestada pela Teresa, esta, aliás, uma mulher poderosa, de grande inteligência e beleza, que fez seu caminho sozinha no mundo, se tornando uma cientista de renome no exterior — coisa que não fica em dúvida em momento algum. De certa forma Segredos é a história de uma mulher que oprime um homem, mas que nunca chega a exterminá-lo. A relação de forças, ali, é explícita, e atravessa os anos se mantendo na mesma questão — você vai me entregar?

De certa forma a lealdade de Pietro a uma Itália que não lhe dá valor (e que foi cruel com a Nádia em sua carreira acadêmica), é por si só conflituosa. Se por um lado é lamentável que uma pessoa tenha de viver por tantos anos temendo “ser cancelado”, ou na pior das hipóteses, preso, por outro, à luz dos feitos de Pietro na vida, e como ele se tornou uma pessoa melhor apesar disso (ou talvez por isso, lembrando do suposto papel da culpa católica como catalisador da bondade na cultura ocidental), é até mesmo otimista. Mesmo o desfecho do romance aponta isso, talvez resolvendo essa tensão mencionada com uma simples renúncia a esta mesma sociedade.

Não gosto do modo de escrever da filha nem do pai. Prefiro frases que não se esforçam para embelezar comportamentos e estados de espírito. Mas ambos tendem a fazer isso e me incomodam. (…). Nunca se consegue envelhecer bem, nem mesmo ele conseguiu isso, apesar de ter uma excelente capacidade de autocontrole. O texto poderia ser tolerável caso fosse breve, e acima de tudo se ele tivesse seguido o modelo de escrita frugal a que me educara quando eu era estudante, e que por anos ele mesmo usou. Mas não conseguiu se conter e, chegado às vésperas dos oitenta anos, desembuchou o romance de sua vida, naturalmente com grandes pretensões de verdade, embora ele saiba desde sempre — como aliás me ensinou — que narrar significa mentir, e narra melhor quem mente melhor.

Starnone, Domenico. Segredos (p. 116).

Esse trecho mostra como Teresa é forte, mesmo nas suas palavras, talvez uma das mais fortes da literatura contemporânea, e se ela não é a protagonista, temos a impressão que mesmo Pietro não é, mas sim a relação de forças e o constrangimento dos segredos que ambos guardam. O cenário, a Itália, as escolas e a universidade, não deixam de ser pitorescos e um repouso necessário quando ficamos cansados dos problemas alheios. Muito me foi recomendado, por comparação, a leitura de Elena Ferrante, escritora contemporânea italiana — tanto que já adquiri a tetralogia napolitana inteira logo, e espero, em 2021, passar mais um tempo neste país incrível, que se parece tanto com o meu país em problemas políticos, mas que carrega uma carga de classicismo que é difícil de encontrar em qualquer outro lugar.


Menções honrosas:

Os três livros finais da saga do bruxo Geralt de rívia:

ibagem

Finalmente acabei os sete livros que compõe o cânone The Witcher, e fiz uma resenha em uma postagem própria, aqui mesmo.

Quadrinhos

Ainda lendo Angola Janga e Diomedes, e de Castanha do Pará eu já fiz uma resenha aqui.

relatroriobrodeck

Relatório de Brodeck eu li essa semana, e fiquei muito impressionado. Só lamento que tenha sido um pouco. Ainda assim, as ilustrações são incríveis. Certamente me deu insumos para retomar a leitura de “É isto um homem?” do Primo Lévi.

Crash — JG Ballard

Eu tenho uma queda por ficção transgressiva, e havendo visto o filme do Cronenberg (não confundir com Crash, no limite), achei que ia ser tranquilo superar esse, mas não foi e este é mais um romance que ficou perdido no caminho, ainda que quase na metade. A introdução, no entanto, já é muito valiosa. Segue trecho.

Vivemos em um mundo regido por ficções de todos os tipos — o consumo de massa, a propaganda, a política conduzida um ramo da propaganda, o pré-esvaziamento, operado pela tela de televisão, de qualquer resposta original à experiência. Vivemos no interior de uma enorme novela. Hoje é cada menos necessário ao escritor inventar o conteúdo de seu romance. A ficção já está aí. A tarefa do escitor é inventar a realidade.

Em inglês:

We live in a world ruled by fictions of every kind — mass-merchandizing, advertising, politics conducted as a branch of advertising, the pre-empting of any original response to experience by the television screen. We live inside an enormous novel. It is now less and less necessary for the writer to invent the fictional content of his novel.

Pedro Páramo — Juan Rulfo

Outro livro maravilhoso que leio aos trancos e barrancos. É um livro de grande carga emocional, desde suas primeiras linhas — e que de certa forma me traz ao momento em que eu, pela primeira, vez saí para conhecer meu pai, um tal de Vitor Paniagua, com dezoito anos. Quando eu começar minha releitura de Cem anos de solidão em breve, certamente vou me aprofundar em ficção latino-americana, incluindo aí Carlos Fuentes e esse clássico máximo de Juan Rulfo.

Sobrevivente — Chuck Palahniuk

Esse livro é hilário, como a maioria dos livros do Palahniuk. Transgressivo e cínico como os livros dele que li antes, Clube da Luta e No Sufoco (melhores leituras de 2019) — esse aqui ironiza o mundo de celebridades evangélicas americano, contando a história de ascensão de um sobrevivente de uma seita maluca e que acaba se tornando um astro neopentecostal. As coisas, como sempre, acabam saindo do controle e ganhando proporções apocalípticas, tudo recheado documentários ácidos sobre a sociedade.

O que chamamos de caos é somente padrões que não reconhecemos. O que chamamos de aleatoriedade é apenas padrões que não conseguimos decifrar. Chamamos o que não compreendemos de bobagem. O que não conseguimos entender chamamos de tolice.

Palahniuk, Chuck. Sobrevivente

Máquinas Como Eu — Ian McEwan

Esse foi o primeiro livro que acabei em 2020 e foi uma leitura realmente prazerosa, de modo que fiz uma resenha para ele aqui no blog. Conta a historia, em um presente imaginário, onde a tecnologia já criou robôs perfeitamente semelhantes aos humanos, com exceção de que são muitíssimo mais inteligentes e capazes — e que ainda assim são condenados a servirem seus criadores. Primeiro livro que leio deste autor, me impressionou os comentários políticos, ainda que em cenários hipotéticos — a Margaret Thatcher perde a guerra das malvinas, Turing nunca se mata e acaba ganhando o reconhecimento merecido em vida, contribuindo inclusive para o avanço da robótica como acabamos vendo. Mas, apesar de todo o worldbuilding, a história se resume a um triangulo amoroso, ciúmes e paixão. Pode ser clichê, mas é boa, e segura o leitor até o desfecho.

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