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Achas que tens aquilo que é preciso para me ler, Garoto Kenosha?

Por um lado, (…), uma avalanche de transformações de toda ordem provocadas pela migração e ocupação massivas, aos quais se imbricam os processos mundiais de circulação global de pessoas, de bens e de valores. As implicações sociais e culturais são incalculáveis. (…) Por outro lado, a própria ciência tem se confrontado com as limitações de sua organização disciplinar para lidar com o novo cenário social e algumas áreas de investigação como é o caso da cultura. (…) Privilegia, também, os fenômenos específicos que constituem a contemporaneidade, visando atender à necessidade de pensar o local na relação estreita com aquilo que acontece com o mundo, ou de pensar no mundo pelo viés da singularidade que nos atravessa.

Manifesto de introdução ao Programa de Pós Graduação ECCO — Link para o site

Como já comentado antes, eu tirei minhas primeiras férias do trabalho para me dedicar ao primeiro mês da pós-graduação em Cultura Contemporânea, na qual havia ingressado no fim do ano passado. Com a ameaça crescente dos casos de Covid-19 no Brasil e no Mundo, houve diversas mudanças de planos por parte das instituições e acabei ficando em casa — sem trabalho e sem aulas. Eu já vinha me interessando no tema da cultura contemporânea e na literatura nos últimos anos de tal forma que este último ocupa na minha vida uma posição transversal — os livros foram tudo que lutei para manter por perto desde muito jovem. Às vezes não precisava nem lê-los, apenas ter eles por perto já me acalmava e trazia segurança. E não tenho certeza de que isso tenha mudado.

No decurso dos estudos de filosofia os assuntos que mais acompanhavam nossas conversas de corredor sempre foi literatura, e Kafka era então tema de diversos trabalhos, e foi graças a ele que acabei me interessando em Kierkegaard, tema da minha monografia — uma conhecida influência do escritor. Eu fiz uma oficina sobre o livro O Processo na faculdade e mesmo um pequeno curta-metragem para esta mesma oficina. Nunca pensei em ser um escritor no entanto.

Vindo de onde eu vim e enfrentando o que eu enfrentei, ter interesse em livros e de fato lê-los já é mais do que suficiente. Eu aprendi a amar a solidão por causa dos livros, e aprendi a escolher meus amigos por causa deles também. Ainda estou aprendendo, e passo por vezes grandes períodos de preparação para outras partes igualmente grandes de leitura intensa. Um movimento como o da respiração, por assim dizer, típico de quem entende que tudo é objeto de leitura, desde o momento em que acordamos até a hora que deitamos.

Sou um grande apoiador de toda forma de leitura e tenho poucos preconceitos literários, e até mesmo eles, em uma análise mais atenta, caem por terra. Isso não me faz um leitor de duzentos livros por ano, no entanto. Justamente porque a minha leitura não se resume em livros, mas se esparge por todo tipo de contato cultural que tenho. Estou jogando um jogo atualmente que poderia muito bem ser um romance de centenas de páginas, tamanha a carga de interpretação que traz consigo. As séries, os filmes e os livros que inspiram estas mesmas séries e livros, eu acredito, vieram eles mesmos de uma única fonte. E é essa mesma fonte que eu procuro (ou me procura) quando leio.

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undefinedEssa lista está desatualizada mas já dá uma ideia: notícias, cultura e um pouco de humor

E existem os podcasts. Atualmente eles são a coisa mais revolucionária na minha vida diária. A diversidade de oferta e a qualidade que possuem em muito me surpreendem e não é incomum que eu adie uma leitura para ouvir o episódio mais recentes dos meus favoritos. Acho que meu desembaraço em relação à literatura me trouxe para esse interesse sempre renovado em ouvir e aprender ouvindo: a língua brasileira, que ouço desde que nasci e que segue tantas normas e regras na escrita (que chega a assustar se você parar para pensar um pouco) flui tão naturalmente e soa tão docemente quando falada! Nestes áudios de whats, podcasts, poesia, rap, vocês escolhe, eu tenho redescoberto o verdadeiro vínculo da língua mãe com a beleza.

Ler livros de papel ficou esquisito depois do kindle; e quando voce quer marcara a página sem riscar ou dobrar?

Ler meus livros na estante, portanto, mesmo com tantos anos de dedicação, é um desafio cotidiano. E para coroá-lo, recentemente, adquiri uma edição de papel de Arco-íris da Gravidade, de Thomas Pynchon. Ainda não acabei, e, chegando ao fim da primeira parte eu tive que colocar de lado para refletir melhor onde eu queria chegar, afinal, com aquela luta. Algumas de minhas aprendizagens eu compartilho aqui.

Para começar: você não encontra o livro em português na versão eletrônica. Nem em azw3, tipo de arquivo do kindle, nem em epub, arquivo de outros leitores digitais, o que impossibilita o uso malandro da busca de termos dentro do livro e da pesquisa rápida ao wikipedia e ao dicionário; isso nem seria tão importante se não fosse outra característica desta pedreira de 700 páginas escrita em 1973: é uma peça de literatura daquilo que se convencionou chamar de Romance Enciclopédico. Como definido em O Livro da Literatura (p. 296): “O termo ‘romance enciclopédico’ se refere à uma vasta e complexa obra de ficção que inclui grupos de informações especializadas sobre assuntos que variam da ciência à arte ou à história. Por meio de um esforço virtuose da imaginação, tenta criar um mundo ficcional além da narrativa linear.” E bota virtuose nisso. Escrito em uma época pré-internet, é um colosso de referências que tratam com profundidade e abrangência de temas como “operações secretas da SGM, cultura popular, surrealismo, erotismo perverso, ciência de foguetes e matemática”.

O livro, também, é um artigo muito conhecido dentro dos círculos da contra-cultura americana, contando até com uma bem cuidada página wiki para auxiliar os aventureiros, mas nada disso está em português. Mesmo os livros de referência, os assim chamados Guide Companion, que pretendem auxiliar na leitura, estão em inglês; mas como um bom brasileirinho eu não desisto nunca, e fui ler ele com as referências em inglês mesmo (A Gravity’s Rainbow Companion — Weisenburger, Steven C.). Isso significava nada mais, nada menos que ler um pouco aqui e outro tanto ali; entenda, não se trata de um livro de referência, é um romance no sentido estrito da palavra e não existem notas de rodapés em lugar algum, o autor escreveu aquilo para ser daquele jeito. Não à toa uma pessoa comentou, à vista de minha mesa e do livro sobre ela, que ele achava a obra ilegível — e (assumo eu) que por isso não era literatura.

Thomas Pynchon, o autor, é conhecido por ser desconhecido. Um famoso recluso, como muitos escritores, apareceu em um episódio dos Simpsons usando um saco de papel na cabeça. Também, tem uma formação em engenharia além da literatura, o que explica, de certa forma, como transita elegantemente por áreas tão diferentes. Um paradigma da erudição, diz-se que seus romances mais recentes (pós internet) são mais palatáveis — mas que são os mais antigos (Arco-Íris da Gravidade, Mason e Dixon) as suas obras primas. Eu não saberia dizer, tendo mergulhado diretamente no Arco-íris…, e somente porque estava dentro de um contexto de isolamento social. Poderia ter comprado um quebra-cabeças e sairia menos desnorteado: seu romance tem mais de 400 personagens e remete como poucos à complexidade que somente o Mundo possui; uma coragem que é característica da verdadeira arte, o que, portanto, contradiz o comentário do meu colega.

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