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Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente

Krishnamurti já dizia

Quando se trata de saúde poucas coisas são tão eficazes e preventivas, eu estive vendo, quanto dormir. Uma boa noite de sono é o mais próximo de panaceia que a humanidade conhece. E basta apenas um par de noites mal dormidas para sentir seu benefício pela ausência.

“Perdendo saúde para obter riqueza. Perdendo riqueza para obter saúde. No fim das contas, não ficando nem com um nem com outro”. Depois dizem que a vida não é irônica. No propósito de alcançar alguns objetivos, esta semana eu acho que entrei em um processo de burn out, mas já estou melhor. Todos pretendem andar pelo Caminho do Saber.

Uns o procuram, outros afirmam tê-lo encontrado.

Um dia uma grande voz dirá: Não há caminho, nem atalho.

Alfredo Braga. Os Rubaiyat de Omar Khayyam

E uma noite de sono perdida não se recupera; mesmo que se durma em horário regular doravante, o dia seguinte à insônia sempre terá sido uma caca. Ainda assim, o sistema não quer que você durma, e se descobrir uma forma de fazer você consumir enquanto dorme, ele fará. Passei a semana mal dormida porque estava escrevendo meu projeto de mestrado. Basicamente é uma proposta para sair da crise tentando reverter alguns danos e vieses cognitivos da atual globalização — daria para dizer que, simplesmente, é um libelo a contra a globalização.

Ainda assim, é também um apelo para que a globalização se volte para aqueles que não foram incluídos neste projeto e que são as pessoas mais importantes no planeta dadas as circunstâncias graves em que estamos nos metendo; as mudanças climáticas e os povos oprimidos.

Excerto:

31 de outubro de 2011 é considerado pela Organização das Nações Unidas o Dia dos Sete Bilhões, pois uma garota nascida em Manilla, nas Filipinas, neste dia representaria simbolicamente a 7ª bilionésima pessoa do planeta. Antes disso, em 1804 a população atingia seu primeiro bilhão, a explosão demográfica começando na Europa. Demoraram-se 127 anos para a população sair de 1 bilhão para 2 bilhões, mas apenas 12 anos para ir de 6 para 7 bilhões. (…) As pessoas passaram a viver mais tempo, graças à difusão de noções de saneamento e higiene e de invenções como a penicilina e a promoção de campanhas de vacinação em massa que ajudaram a população a livrar-se de doenças como poliomielite e outras infecções.

Hoje, 50 anos depois da primeira onda da Revolução Verde, criou-se uma hegemonia nacional e talvez mundial, de poderosos donos de terra com acesso privilegiado à elite política que lhes garante perdão de dívidas milionárias em troca de dinheiro para campanhas — tudo contra uma grande maioria de pequenos produtores rurais. Também, deu-se origem a discussões cada vez mais urgentes a respeito do acesso à terra, do valor do alimento não modificado e da grande cultura capitalista dos commodities internacionais contra a agricultura familiar de produtos diversos, assim como da preservação ambiental e da sustentabilidade a médio e longo prazo do modelo de negócios da agricultura extensiva.

A desterritorialização do planeta já está em andamento, e sabe-se que se está em meio à plena commoditização dos afetos quando cidades inteiras surgem do nada, apenas para dar vazão a um crescimento econômico desvairado. Estas cidades vazias de memória que as localize em uma ordem histórica além de uma ordem econômica, pululam no Mato Grosso e carregam em seu bojo as dores e prazeres do enriquecimento rápido. (…). A natureza como sublimação dos desejos e anseios metafísicos dos homens permanece afastada e cercada; o potencial eco-turístico do complexo de Chapada dos Guimarães e do interior do estado tão alardeado nos últimos 50 anos depende sempre de algo mais para se realizar.

O presente projeto procura compreender (…) os rumos que a globalização emergente está tomando e qual o papel do indivíduo e das instituições, informando assim a melhor forma de adaptar-se às mudanças, não de uma forma passiva como têm sido feita, mas com a atitude de quem quer conhecer as regras do jogo como um especialista — com o único fim de subverte-las como um artista. Procurando compreender as diversas redes de significados possíveis que a arte e a tradição dos diversos povos ignorados pela globalização — indígenas, quilombolas e campesinos para ficar em uma paisagem natural e não-urbana, mas também estudantes e comunidades LGBT nas cidades — será possível vislumbrar que esta alternativa à ideologia de consumo já está posta; e que mesmo em meio à uma onda de estupidez, de ganância cega e imediatismo, é possível escavar técnicas, saberes e criatividades que se sobressaiam a atual crise instalada. Problematizando a mundialização da cultura e da cultura-popular internacional pode-se sobrepor uma modernidade que engloba todas as outras modernidades e que restaura o statu quo do homem como parte da natureza.

A globalização é um movimento econômico que traz um livre trânsito maior de capital, mercadorias e indivíduos, através das fronteiras dos países graças à sua maior interdependência econômica entre os governos — e é, entre outras causas, responsabilizada por uma era de avanços tecnológicos e culturais jamais vista antes. A riqueza total gerada no mundo foi tão grande que alguns fãs ardorosos do liberalismo e da globalização chegaram até a afirmar que a paz mundial é, entre outras coisas, possível graças à difusão do livre comércio entre países. . Outra dita grande vantagem da globalização é a minimização do papel controlador e centralizador do estado já que o polo de produção não se centraliza em nações mas em lugares do globo onde há vantagens competitivas.

Mas nem tudo são flores no “mundo plano” do capitalismo internacional (e mesmo as flores não parecem ter muito tempo pela frente com o declínio da população de abelhas).(…) As críticas à globalização costumam vir por três frentes diferentes: Econômica (a questão da desigualdade e da distribuição de renda), Humanitária (onde se levanta a questão da exploração de populações carentes em trabalhos precários) e Cultural (onde se levanta a questão do imperialismo cultural com influências do capital internacional e domínio das grandes corporações da indústria cultural).

Nos países em desenvolvimento a situação é ainda mais delicada, considerando-se também a herança deixada pelos conquistadores e pelo colonialismo. Em referência a esta herança, e chamando assim a “humanidade” de um lado e a “sub-humanidade” do outro, diria Krenak: “Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade”.

(…)

Essa mundialização — um termo que serve a distinção feita entre aspectos da globalização como movimento econômico e globalização como homogeneização cultural (CASTRO, 2004) encontrada primeiramente em Ortiz, Renato (1994), é uma parte substancial de tudo que a sociedade contemporânea vive hoje: desde a coca-cola até as redes sociais, do Big Mac ao WhatsApp; essa dimensão do contemporâneo é enraizada na cultura de massa mas também em uma ideia de humanidade e de uma tecnicidade que lhe é própria, como um destino manifesto, e que foi implementada aos poucos ao longo de todo o século XIX e XX; é, portanto, o mundo das ideologias de consumo. Ideologia onipresente, pois vive-se na era em que usam-se satélites para comunicação instantânea, onde já não há mais uma terra incognita . É era da utopia digital da internet e internet das coisas; da descentralização da hospitalidade com aplicativos de hospedagem como o Airbnb e da horizontalidade das pautas, e onde existem espaços de discussão com moderação zero ou quase zero, como os grupos virtuais com participantes que negam o Holocausto, mas também do grupo de moradores de um mesmo condomínio, da família ou de moradores próximos que pegam o mesmo ônibus. (…) A falácia do índio que é menos índio porque possui smartphone é a mesma falácia dos “humanos” versus “sub-humanos” de que fala Krenak, pois têm subentendida a intolerância e a recusa de aceitar a tradição e cultura que é própria de um povo. Povo este que resiste há séculos à pilhagem gradual de tudo que lhe é intrinsecamente sagrado.

E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. (…) Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo . Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Argumentar por uma nova globalização que não nega os avanços tecnológicos, mas os reencaminha pra uma nova direção é assumir que o paradigma civilizacional pode e deve ser reformulado, para o bem da própria civilização. E passa pelo investimento em culturas híbridas, assim como em novas tecnicidades amparadas por saberes tradicionais e etno-saberes. A definição mais comum para holismo pode ser relembrada aqui: a compreensão do todo integral dos fenômenos é diferente da compreensão meramente analítica destes mesmos fenômenos.

Não é muito original, admito, mas acho que está encaixada no zeitgeist e na linha de pesquisa do programa: epistemologias contemporâneas que nasçam da constatação que a a autoproclamada verdade objetiva no pós-modernismo é apenas mais uma interpretação.

E vemos isso mesmo todos os dias, basta abrir o Twitter: alguns políticos, eles mesmos, estão vivendo uma guerra memetica neste momento, compartilhando mentiras apenas para reforçar narrativas.

Foi uma semana bem intensa, mas que não abalou meus hábitos mais íntimos como leituras não-relacionadas ao trabalho; ainda assim me sinto meio como um balão murcho ou uma planta no canto da casa que esqueceram de dar água.

Conhecimento liberta, dizem, mas a que custo? A chave para abrir a porta sempre esteve na fechadura. (Não há porta.) Basta só sair, mas a minha falta de liberdade é tão dura quanto mais me falta o próprio aparato para definir esta falta de liberdade.

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