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Naturalmente desequilibrado

(como nada deveria ser)

capa

Era idiotice se rebelar contra o mundo — Maga e o mundo — Rocamadour, quando tudo me dizia que assim que recobrasse a independência eu deixaria de me sentir livre. Hipócrita como poucos, me incomodava uma espionagem rente à minha pele, minhas pernas, minha maneira de gozar com a Maga, minhas tentativas de papagaio na gaiola lendo Kierkegaard através das grades, e creio que acima de tudo me incomodava que a Maga não tivesse consciência de ser minha testemunha e que, ao contrário, estivesse convencida da minha soberana autarquia; mas não, o que verdadeiramente me exasperava era saber que nunca tornaria a estar tão perto da minha liberdade como naqueles dias em que me sentia encurralado pelo mundo — Maga, e que a ansiedade por me libertar era uma admissão de derrota.

O jogo da amarelinha (Cortázar, Julio)

Meu teste de ancestralidade por exame de DNA foi retornado e o valor pago devolvido. Usei um serviço similar ao 23andme disponível na gringa, mas com sede em Israel e atuação no Brasil. O kit já havia chegado com atraso, e, após a coleta, mesmo com a postagem Sedex, não foi possível receber os resultados no prazo oferecido, de duas a três semanas. Quando entrei em contato eles disseram que por causa da pandemia o laboratório, que fica em Houston, Texas, não recebeu a amostra com a minha saliva e iria, portanto, cancelar o pedido.

Quando fiz o pedido, ainda em março, a ameaça da pandemia não parecia tão grande; decerto não parecia ser capaz de frustrar uma encomenda de teste de DNA. Minha intenção à época, e que já vinha nutrindo há algum tempo, era conhecer melhor meus ancestrais, especialmente o lado paterno da família, que tive tão pouco contato. O interessante destes testes, no entanto, é que quando a base de dados é realmente boa, novas conexões se tornam possíveis e data de pessoas de muitos lugares diferentes, em suas ancestralidades, podem ser sobrepostas, e era daí que eu partiria em minha busca por mim mesmo.

Estes testes de DNA não oferecem muita coisa ainda, mas eu conheci, na minha pesquisa enquanto esperava pelos resultados, umas histórias realmente tragicómicas, como a do rapaz que descobriu que dormia com a meia irmã já há um ano, e do cara que soube que era filho de seu tio. Minha história, no entanto, se não é tão ruim também não é nada original, e eu cresci com uma sólida figura paterna; nunca tive do que reclamar até o dia em que numa discussão soube que era um filho de criação. (Como eu nunca percebera isso só mostra como eu queria ser apenas filho de minha mãe).

Quando uma pequena falha de logística desencadeia uma completa mudança de entendimento

A família da minha mãe sempre foi presente, numa multidão de primos e primas, avô e tias, todos os quais eu amo muito até hoje. Nada me fez falta, exceto aquilo que eu sequer sabia que possuía. Crescer com meus pais juntos, e ver minha irmã crescer e se tornar uma bela mulher é uma amostra para lá de confiável de que nunca houve nada de errado ali. Mas meu pai às vezes era um pouco misterioso, e se manteve sempre à parte de sua própria família. Não posso imagina porque senão por minha causa.

Ironicamente como sói a vida pode ser meu pai soube logo depois que também tinha uma filha pré-marital, e logo eles ficaram próximos. Ela deu a ele já três lindos netinhos, cuja caçula eu e a Fatima tivemos a honra de nos tornarmos padrinhos. Isso só foi possível porque eu mesmo resolvi me casar na igreja e para isso tive que me batizar — estes que já eram os planos antes do falecimento do meu pai verdadeiro, Vitor, e que se concretizou três meses após sua partida.

O Vitor, de quem eu já falei aqui algumas vezes, foi um amigo especial para mim. Recebeu-me em sua casa e em sua vida de braços abertos quando soube de minha existência — logo após aquela decisiva discussão com meu pai onde eu soube da existência dele. Vitor vivia a planejar viagens e passeios juntos quando nós dois tivéssemos tempo, onde eu conheceria a família dele lá do Paraná, mas, como sói a vida pode ser, os planos de Deus eram outros.


psicotropicos

Em Bacurau existe um psicotrópico nunca detalhado ou explicado, mas que faz parte da complexa rede de materialidades que traz a sustentação de corpos daquela comunidade. Além dos sinais de satélite, da gasolina dos veículos e dos próprios veículos, o remédio, tomado apenas pela gente de Bacurau, é um símbolo para a conexão espiritual do passado e do futuro, do tecnológico e do arcaico, o qual as gentes de bacurau procuram intermediar; resistir naquele contexto não se separa de existir. Psicotrópicos, legais ou ilegais são partes reais da existência humana e parte inegável do arcabouço cultural humano.

Nesse contexto, agora procuro eu mesmo entender as diferentes epistemologias possíveis na tessitura da realidade humana; a saber, não só o conhecimento dos cientistas brancos; com sua epistemologia do norte, como chama Boaventura Souza Santos, mas também a epistemologia dos cientistas indígenas (xamanismo), do conhecimento afro-brasileira da Umbanda e Candomblé já tão apropriado pelos neopentecostais; pelo uso de enteógenos como o chá de mimosa no contexto (supracitado) do resiliente povo do nordeste brasileiro; quando a ciência falha, ou mesmo muito antes de ela falhar, o que disseram nossos médicos da terra, nossos sonhadores, nossos indígenas? Não porque as explicações concorrem, mas porque elas convergem, e é preciso saber escutar. Eu fui amiúde parte da experiência desta tese, e também ei de ser a prova.

Eu tomei chá de ayahuasca regularmente (uma vez a cada seis meses provavelmente) por volta de 2007 e 2009; a última vez foi antes de 2012. Então, eu encontrara o amor da minha vida, e mesmo com muita resistência, convergia toda a minha vida para direção daquilo que ia ser a nossa vida. Nunca tomei com proposito algum além de experimentar e viajar; ainda que eu tivesse em mim algum propósito maior, ele nunca me foi revelado; a Força sempre me atingia e preenchia meu espírito, mas não deve ter encontrado muito material com que trabalhar. Como resultado eu nunca me fardei ou sequer cheguei perto disso. Levei alguns amigos ao centro e que acabaram ficando, mas sempre tive comigo que a meditação também me levava onde o chá me levava e, o mais importante, sem sustos. Desde então eu só medito.

Porém uma acentuada racionalidade tomou, aos poucos, conta de mim, e não no bom sentido. Tornei-me um pouco materialista, um pouco descrente, quase ateu. Minha vida ficou triste, e não encontrei a magia que antes guiava meus passos, seja na arte dos encontros, seja no flâneur pela cidade; mais ainda, envelheci e acumulo fatos, mas não esperanças. Essa semana li um livro chamado Escorpião Encalacrado onde é analisada toda a obra do escritor argentino Júlio Cortázar do ponto de vista do seu processo de criação e da poética mesma do autor, a saber, uma poética de destruição, donde surge a metáfora do título, porque o escorpião quando acuado pica a si mesmo e se destrói. Minha racionalidade tem me aproximado deste cenário, e me pergunto se foi para isso mesmo que vim ao mundo, ou se é isso que quero deixar para os que virão. Se é o que quero: queimar e queimar até não sobrar nada.

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