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Cresci colecionando citações. Sim, eram uma das minhas coleções — senão acumulação — que tive ao longo da vida, como cartas de ex-namoradas, que ficavam em uma caixa de sapatos em baixo da minha cama e que tive de inevitavelmente jogar fora (sem rasgar, sem queimar) um dia.

Estas citações eram imprimidas em fonte 9 em páginas de fax e guardadas em caixas de sapato. Antes mesmo de eu ter computador ou acesso a internet , hoje tão comuns e acessíveis mas que eram muito difíceis então e que talvez por isso mesmo sejam fonte de um impulso acumulador que eu adquiri e que não consigo em hipótese alguma me livrar. Meu HD que o diga: são vários gigabytes de coisas que posso facilmente recuperar online, mas que baixo para um uso posterior, como o esquilo que se prepara para o inverno. As citações variavam desde pensamentos mais aprofundados e filosóficos a frases de efeito engraçadas. E como eu era muito ingênuo, eu não sabia diferenciar uma de outra.

Muitos destes pensamentos, eu não sabia ainda, eram misóginos. Misoginia neste caso significa aversão ao matrimônio, e não à mulher, o tipo de misoginia de que acusam Nietzsche às vezes, mas sim o tipo de citação que atribuem , por exemplo, à Sócrates: case-se, de uma maneira ou de outra: se for uma casamento bom, serás feliz, se for um casamento mal, serás filósofo. Este tipo de misoginia é atribuído à Montaigne[1], também, e a tantos outros, sendo que eu cresci com a noção bem enraizada que o casamento só era bom para as mulheres, e que ao homem inibia-lhes a vida.

Sou leitor de Nietzsche há muitos anos, porém mais por admiração do que por correlação de ideias; prefiro Thoreau, apesar de sua prolixidade, e Lao Tse, por seu entendimento. Ainda assim eu entendo que filósofos de todas as eras tenham todos acusado o casamento de causar infelicidade: eles próprios eram muitas vezes abandonados, e Schopenhauer encabeça a lista de homens nunca amado por mulheres e abandonados à própria sorte — ainda que, eu entendo, eles amassem as mulheres — Nietzsche com sua Salomé, Schopenhauer com sua amiga italiana. O que eu quero dizer é que não é copiando os defeitos dos grandes filósofos que você vai se tornar um. Mais provável o contrário.

Ainda assim, a cisma com o casamento sempre persistiu. Nem todas as vezes eram culpa dos filósofos, no entanto; lembro que no casamento do C., amigo de muitos anos atrás, meus amigos estavam combinando de ir com um nó de enforcado sob o paletó; no ultimo casamento que eu fui antes do meu — um lindo, porém simples casamento, o senhor ao meu lado, cabeça branca, casado a trinta anos no mínimo, avô de três netos, me avisou discretamente: “escape enquanto dá”. Nunca soube se ele estava sendo sério ou brincando, sofisticadamente, comigo.

“Deus não dá asa à cobra”, diz um adágio popular, e deveria eu entender que o casamento obstrui o homem porque é o natural. Sendo assim, é claro que o homem não pode ter poderes sobrenaturais, ele precisa de limitações. Mas, neste caso, que limitações lhe seriam melhores, mais doces, e aceitáveis? Parto do princípio que os homens são mesmo, na maioria, infiéis. A monogamia é simplesmente você jurar fidelidade (sexual, sacramental, emocional) a uma pessoa só. A Vox tem um programa [2]muito interessante sobre isso, uma digressão em torno desta instituição que, nos Estados Unidos está por um fio, e ouso imaginar que mesmo no ocidente como um todo[3]. Eles entrevistam casais de vários tipos, desde o monogâmico completo até o casal monogâmico do mesmo sexo e os poliamoroso; nada de novo, e, ainda assim, tudo de novo. Minha contribuição, no entanto, entra com a leitura do clássico Sonata a Kreutzer do século 19 do grande romancista russo: Liev Tolstói.

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Choque de realidade

Este livrinho, que dá para ler em um dia dedicado, é um famoso livro do Tolstói sobre sua opinião sobre o casamento, que sabemos ser uma opinião que ele levava bem a sério, uma vez que ele fugiu de casa e da esposa com oitenta anos, para morrer só em uma fria estação em astapovo[4]. Conta a história do assassinato de uma esposa por seu marido que, ciumento e desenganado, vivia em um casamento infeliz desde seu segundo mês de matrimônio. Não ouso entrar em análises literárias, sendo esta a minha primeira leitura da obra e a primeira vez que leio este autor, mas eu gostaria de apontar algumas notações que eu fiz e que lançaram luz sobre o vale sombrio da minha própria misoginia.

“Os senhores falam do que julgam ver. Eu falo do que realmente é. Todo o homem sente o que os senhores chamam amor perante a mulher bonita, e muito raras vezes pela sua própria mulher. De resto, lá diz o provérbio, e com bastante verdade: a mulher do próximo é um pêssego, a nossa é amêndoa amarga”.

Esta citação define bem o que chamamos de misoginia, e está no começo do romance, quando, ainda sem conhecermos o protagonista, alguns passageiros discutem sobre o futuro das mulheres e do casamento, havendo ali uma interlocutora que defende a liberação feminina, que a Rússia daquele tempo ainda estava a conhecer.

“Só nos romances reles é que o amor não tem fim. Só as crianças podem crer em tal. Amar um homem ou amar uma mulher toda a vida é teimar que uma vela pode arder eternamente — concluiu lançando algumas baforadas de fumo.”

“Ter o mesmo ideal não é razão para terem o mesmo leito. Além disso, essa harmonia só se descobre em mulheres novas e bonitas, nunca em mulheres feias — insistiu, com sorriso sardónico. — Eu pretendo que o verdadeiro amor é uma causa de dissolução no casamento em vez de ser, como os senhores julgam, a sua consagração”.

Outro argumento comum para quem não crê em casamentos, e ponto de apoio principal para a história que o protagonista vai contar: ele era tanto algoz quanto a vítima, e ele tanto fez mal quanto sofreu nesta vida. Também, aqui vemos como é impossível conciliar a felicidade na vida conjugal — por uma questão de princípios, como todo misógino pensa. Mas não acaba por aí, como ele vai afirmar:

“Mas quando o homem e a mulher são constrangidos, sem mesmo saberem porquê, a ficarem unidos para a vida inteira, quando, passados dois meses, desejam separar-se, e o casamento os impede de tal, então começa a vida infernal que conduz à embriaguez, à ferocidade, ao assassinato, ao envenenamento e ao suicídio!”

Isso me fez pensar várias vezes qual é principio que juntam as pessoas. Amor é lugar comum, certo? Falar de amor e não provar, no entanto, é fácil. Por que eu me casei, afinal? Estabilidade? Filhos? Só posso julgar por minha própria experiência, mas também me apraz conhecer a experiência de outros. Nesta altura do livro eu estava inclinado a concordar com tudo o que o protagonista dizia, mas eu sabia que a coisa não ia acabar bem, então me restringi em minhas crenças.


Aos poucos eu entendi a minha própria narrativa. Lembrei que para que meu casamento fosse bem sucedido eu teria de começar por algum lugar — meus pais eram o alvo ideal, lembrei do casamento deles, eles estão juntos até hoje, o que é uma raridade se parar para analisar — mas a que custos? Eu lembro de minha mãe expulsando meu pai de casa por que ele assediou a empregada, jogando as coisas dele na rua mas, depois, ele acabou voltando. Sei também que ela mentiu para ele quando o fez me criar por alguns anos antes de dizer que o filho não era dele — ele passou um tempo fora e depois nos aceitou, isso antes de minha irmã nascer. Em muitas discussões eles sempre empurraram — o pai sempre mais que a mãe, a culpa um para o outro com o “seu filho fez isso”, “sua filha é aquilo”. Ainda assim eles estão casados, no melhor estilo felizes para sempre, com aquela intimidade que dá gosto de ver. Mas insisto, é esse meu exemplo pessoal?

Tem também meu avô que está bem casado e, parece, muito feliz, vivendo uma velhice digna ao lado da sua segunda esposa. Igualmente, posso dizer, em 2013, quando conheci dois professores de meditação, casados, e que foram especiais na minha vida, me enxotando do retiro de meditação e, consequentemente, me fazendo voltar para minha vida em Cuiabá, e enfrentar meus desafios — aquele tipo de tapa para acordar, sabe? Foi nessa época que propus à minha atual esposa para sermos companheiros, senão marido e mulher, e vivermos juntos. Companheiros então, e ainda hoje, é a maneira de chamar alguém que é parte inseparável da sua vida para além de qualquer título restritivo ou dogmático, como esposa/marido, mulher/homem, etc. A ideia aqui é não se envaidecer com títulos de relacionamento, ainda mais com o clássico e muitas vezes difícil de aguentar por seu peso semântico, felizes para sempre.


Eu já tive companheiras antes — só não sabia que era uma coisa assim tão importante no entanto, sendo que é preciso crescer em espírito por muito tempo, perder e buscar por muito tempo — correndo o risco real de ficar sozinho por toda a vida, para finalmente entendermos que é quase impossível ter duas chances, quem dirá quatro ou cinco, de encontrar seu amor para a vida toda. Em uma discussão me foi dito até que se eu houvesse tido uma companheira realmente, eu não a teria perdido. Só alguém que nunca perdeu pode dizer isso, e portanto ignorei. Sorte de quem não corre o risco de acabar sozinho, seja por sabedoria, seja por sorte. Mas minha misoginia permanecia, no fundo, como uma vozinha persistente que tive aprender a silenciar.

Niilismo Raiz

A Rússia do século dezenove, salvo engano, era a Rússia czarista, progressista em costumes mas que não atentava para o sofrimento do povo. As cortes tinham seus próprios costumes, muito semelhantes ao dos franceses, a quem copiavam a torto e a direito, mas, lembrando que é a primeira vez que leio Tolstói, muito me surpreendeu o conteúdo filosófico de sua escrita. Nela você encontra o cristianismo incipiente e com alto teor moral, mas também as teorias mais recentes do Schopenhauer e sua leitura moderna do budismo.

“ — Mas nesse caso — perguntei, admirado — como se perpetuaria o género humano?

— E tão necessário é perpetuá-lo? — perguntou ele com rudeza.

— Sem dúvida. Porque, não sendo assim, não existiríamos.

— E para que é necessário existir?

— Para quê? Para viver.

— Para viver? Schopenhauer, Hartmann e os budistas pretendem que a verdadeira ventura está no «não ser». E têm carradas de razão quando afirmam que a felicidade do género humano consiste na sua destruição”.

O protagonista diz, resumindo bastante, que a mulher excita os sentidos e melindra o homem, e que só uma pureza do marido para a mulher, tanto quanto a fidelidade que o resguarda de olhar outras mulheres, poderia salvar tanto a mulher como o casamento. Do ponto de vista dele seu casamento era uma armadilha dos sentidos e ele foi fisgado quase literalmente. Me lembrei dos retiros de meditação que tem um véu separando as mulheres dos homens mesmo no hall comum de meditação. O problema do casamento, para o protagonista do romance, simplesmente, está em que:

“Para que o homem possa ter relações sexuais honestas é preciso que se tenha habituado à mais absoluta castidade. Mas o homem sucumbe nessa luta e daí resultará o casamento moral. Mas se o homem, como sucede hoje em dia, se entrega ao amor sensual o casamento não é mais do que um pretexto para novas volúpias e para uma vida perfeitamente imoral”.

Precisamos lembrar que é na Russia altamente machista e moralista que se passa a história; ainda assim, não vejo tanta diferença da nossa própria sociedade. Aí já está inserida a principal ideia do romance, a meu ver: o casamento não é lugar para se esconder de si mesmo e nem para legitimar sua imoralidade — o homem quando é irracional é pior do que qualquer animal. Eu já estava começando a achar que Tolstói e minha companheira se conheceram noutra vida e combinaram de escrever esse livro para mim.

Nobre Feminismo

É lendo livro assim que eu me prendo mais à certeza de que a luta por um mundo mais justo passa por um mundo mais justo para as mulheres. Com isso não quero dizer que os homens devam deixar de ter as coisas, apenas que eles devem deixar de ter as coisas das mulheres. Não muito longe deste pensamento — que quer englobar mais do que separar, está esta fala, mais pungente do ponto de vista literário, no entanto:

“De que vale abrir-lhes [às mulheres] largos e novos horizontes? Para quê tentar emancipá-la ? Enquanto a mulher aspirar ao casamento, enquanto a mulher não conseguir vencer os sentidos e conservar, como inestimável tesouro, a sua virgindade, enquanto a mulher consentir em permanecer fonte de gozo sensual, a mulher permanecerá escrava.”

Isso, isso, isso. Guardadas as devidas proporções e distanciamento histórico, acho isso muito parecido com o que eu penso. Claro, a mulher ainda é fonte de desejo sensual, mas isso muito mais ligado à uma questão ontológica — o homem, que já nasce em pecado, sendo o desejo natural à existência humana, podendo ser usado para coisas boas ou não.

Também, a mulher quer, e muito, seu espaço e sua chance na vida, não o que é dos outros, mas o que é delas de direito. Ainda assim, vejo a todo lado homens decidindo por elas e explicando por elas, inclusive coisas que são naturais à própria mulher e ninguém mais, e não posso evitar de pensar nisso mais como manobra política do que real preocupação com a mulher. Do meu ponto de vista nem mesmo eu, como homem, posso me atrever a falar disso… e talvez por isso essa discussão não tenha, por ora, uma conclusão.


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Para além de etiquetas.

Quanto ao meu casamento, posso dizer, nenhuma das muitas citações e aforismos de filósofos me prepararam nem um pouquinho, e se não me entusiasmaram, tampouco me assustaram, a curiosidade e o amor sempre sendo mais forte. Não acho que será fácil, mas um paradigma certamente foi desmantelado. Estar ao lado de sua escolhida é uma eterna descoberta, uma alegria perene, com momentos de paz completa e inabalável. É algo que vale a pena, para além de qualquer tradição.

[1] de Montaigne, Michel. Os ensaios: Uma seleção (Locais do Kindle 3608–3612). Penguin-Companhia. Edição do Kindle.

[2] https://www.vox.com/2018/5/23/17378322/vox-netflix-show-explained

[4] https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/10/31/numero-total-de-casamentos-cai-23-em-2017-mas-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-sobe-10-diz-ibge.ghtml

[6] http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/poema.htm

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