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Acabou, finalmente, a primeira semana de setembro. Agosto já parece uma mancha cada vez menor nos espelho retrovisor dos pensamentos, mas não me deixo enganar: se ele não foi tão difícil na passagem o será, certamente, em retrospecto. Foi em agosto, afinal, que aconteceu o dia do fogo, onde talvez tenhamos criado nosso próprio desastre de Tchernóbil, em que, guardada as devidas proporções, condenamos as próximas gerações a uma vida substancialmente mais difícil, senão menos diversa e colorida, no futuro.

E não falo do futuro da boca para fora. Ontem, 6 de setembro, nasceu a Emilly, segunda filha da Samylla. Está sendo um ano especialmente fértil para meus amigos das antigas, entre eles os gêmeos da Gabi e Danilo, o filho da Nelice e do Charley e a filha do Everton e da Manu. Não sei se é porque sou antiquado ou sonhador, mas pensar nestas novas crianças, nascidas de pessoas que eu conheci quando nós mesmos éramos crianças, é muito legal, para dizer o mínimo.

Isso porquê colocar um filho no mundo é um dos movimentos, ao mesmo tempo, mais ambiciosos e naturais que o ser humano pode fazer na vida. Mesmo sem o exagero e o glamour que rodeiam estas coisas (graças ao marketing e o todo-poderoso sistema capitalista) posso dizer com segurança que não existem muitas coisas semelhantes em termos de mudança de perspectiva e de paradigmas. Sou um apaixonado pela paternidade e não poderia estar mais comprometido com isso, nem que eu mesmo tivesse filhos.

Ter filhos subentende confiar que eles vão lutar e conseguir achar seu lugar no mundo, a despeito, muitas vezes, dos nossos estragos na criação deles. E devemos fazer isso sabendo que o mundo pode ser e é um lugar assustador, e que mesmo famílias mais preparadas e unidas sucumbiram às suas forças desagregadoras. Eu, que vivi por esta regra tenho firme crença nessa escolha entre mundo ou derrota, até porque a cada dia fica mais evidente que não importa tanto o que dizemos, mas o que demonstramos e que de todas as coisas que temos na vida ou fazemos na vida, o amor é a melhor, senão a única solução possível. E que, afinal, não fazemos um mundo melhor para nossos filhos, isso é impossível e está além de nossas capacidades; fazemos filhos melhores para o mundo.

Família, enfim, é importante, e a configuração da família não importa desde que haja amor. Mesmo tirada de cena todas as pretensas demonstrações de amor que vemos com tanta frequência, os laços de família são laços muito fortes e sempre podem ser usados à exaustão: família começa com a descoberta da contingência, que aliás nunca deixa de existir, mas termina com nobreza e afeto incondicional. Mesmo com as mentiras sociais diárias, mesmo com as violências naturalizadas: família é um valor basilar, é o feijão com arroz da existência. Fora dela não existe muita coisa e falo com o lugar de fala de alguém que já procurou o suficiente e sempre acabou voltando.

Como disse Tostói, brilhantemente aliás, na abertura de Anna Kariênina, “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. E por isso mesmo dão margem a tantas obras de arte e estudos de casos reais. Não posso evitar me lembrar de da família Wittgentein ou da família de Festen, a premiada obra cinematográfica criada sob o dogma 95 do Lars Von Trier e companhia, mas existem muitíssimas mais. Muitas coisas se aprendem com estas famílias e aliviar-se porque não somos uma delas é apenas uma destas lições. Contingência é a palavra chave aqui: poderiam ser nós no lugar deles, assim como não poderiam. Nunca sabemos ao certo o peso que uma família carrega porque isso é absolutamente pessoal e, de um ponto de vista cósmico, não importa nem um pouco. Neste mesmo sentido copio e colo um capítulo de O Profeta de Khalil Gibran

E UMA MULHER que amamentava um bebê disse, “nos fale dos Filhos”.

E ele disse:

Seus filhos não são seus filhos.

Eles são os filhos e as filhas da ânsia da Vida por si mesma.

Eles vêm através de vocês, mas não de vocês,

E embora eles vivam ao seu lado, eles não pertencem a vocês.

Vocês podem lhes dar seu amor, mas não podem formar seus pensamentos,

Pois eles possuem seus próprios pensamentos.

Vocês podem abrigar seus corpos, mas jamais suas almas,

Pois suas almas residem na mansão do amanhã, que vocês não podem visitar nem mesmo em sonhos.

Vocês podem lutar para ser como eles, mas não procurem fazê-los como vocês.

Pois a vida não anda para trás e nem se demora com o ontem.

Vocês são os arcos dos quais suas crianças são arremessadas como flechas vivas.

O Arqueiro fita o alvo no caminho infinito; Ele os estica com toda a Sua força para que Suas flechas possam voar ligeiras, rumo ao horizonte.

Deixe que o seu encurvamento na empunhadura do Arqueiro seja a sua alegria; Pois assim como Ele ama a flecha que voa, ama da mesma forma ao arco que permanece estável.”

Gibran, Khalil. O Profeta . Textos para Reflexão. Edição do Kindle.


Esta semana eu assisti o filme que o Danilo me deu ainda em 2012 quando ele ainda era O Bucaneiro, um pirateador de filmes cuidadosamente escolhidos, e que foi o responsável entre outras coisas por me entusiasmar com o cinema; era o último filme de Béla Tarr, O Cavalo de Turim (2011) — um filme lento, em preto e branco, sobre a decrepitude e a solidão e a luta crua pela sobrevivência nascida da premissa de eventos reais — é a história fictícia do cavalo e do dono do cavalo de Turim na Itália que foi abraçado por Nietzsche por ocasião de seu colapso nervoso.

Este filme, do diretor húngaro tem algumas falas memoráveis pela sua dureza e cinismo em relação à humanidade, um quê de filosofia continental que encontramos nas obras do Emil Cioran, mas que não deixa de ser positivo em espírito, afinal, estamos a caminho não de um fim, mas sem dúvida de um recomeço. O velho dá lugar ao novo e neste novo mundo não há de haver espaço para egoísmo, segregação e políticas retrógradas. Mesmo a política já mudou e continuará mudando, logo mudará tudo, desde concepção de sociedade à concepção de humanidade, onde será, terá de ser, abraçada toda forma de existência e vivência. Não há nada que recear pois como disse Nietzsche, “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”.

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