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Quanto maior a frente, maior as costas, diz o provérbio chinês

Para um homem ‘bem-nascido’, ser feliz é assumir o destino de todos, não com a vontade de renúncia, mas com a vontade de felicidade. Para ser feliz, é preciso tempo, muito tempo. A felicidade também é uma longa paciência. E quem nos rouba o tempo é a necessidade de dinheiro. O tempo se compra. Ser rico é ter tempo para ser feliz quando se é digno de sê-lo.

Camus, Albert. A Morte Feliz.

Fazem bons dez anos que li O Estrangeiro de Albert Camus, e acho que eu não estava pronto, uma vez que o livro bastante literalmente explodiu minha cabeça. Ao mesmo tempo lia O Lobo das Estepes do Herman Hesse o que só aumentou meu desencanto no universo.

Falo disso por que estou com este comentário de A Morte Feliz, que é ela mesma uma obra do Camus que supostamente antecede O Estrangeiro e a forma. O desencanto parece evidente. Se trata do absurdismo e do existencialismo do pensamento Camusiano. É muito próximo de um pragmatismo, essa maneira prática de resolver as coisas da vida, mas de forma alguma é banal como tal; é uma concepção da vida e de sua beleza, ainda que no meio de uma dor onipresente e brutal. Afinal, entender do que se trata a existência é nada mais nada menos que entender e apreender a essência da liberdade.

Por isso este comentário está anotado, bem claro, do dia que comprei o livro e comecei a ler: eu quis notar que eu ainda não sei o que é a liberdade, tampouco felicidade. “A felicidade é uma grande paciência”. É uma nutrição diária de muitos anos, de cuidado e carinho, de aprendizagem e atenção. Todos sabemos o que é mesmo que nunca tenhamos experimentado — é a própria maestria da vida. No entanto existem obstáculos a esse aprendizado. E… por mais banal que possa parecer… o dinheiro é um deles.

Como Tolstói aos 80 anos, eu fugi de casa estes dias. Dormi fora. Bêbado, passei a noite com amigos em um alojamento estudantil. Passou rápida, a hora, mas as consequências ainda estão presentes, uma vez que é mais um dia sem solução na minha questão rotineira de ser feliz. Ainda: discuti com a esposa. Comi pobremente e, como disse, bebi. Voltei para casa de manhã, fazendo alguma avaliação das consequências, ainda que não muitas. Estive no mundo e agora voltava. No ar o cheiro da atividade, o ruído do mundo.

Que mundo criamos? E que mundo eu quero? Onde está o limiar de meu mundo e o mundo lá fora? Onde está minha idealidade, onde está minha realidade? Onde ela se entrelaça com o outro, com aquilo que está lá independente de qualquer coisa que eu faça ou seja? A maneira mais comum de encarar isso é com o pragmatismo, ainda que cotidianamente. A vida é mais do que isso, e mesmo o mais pragmáticos dos filósofos (e talvez principalmente eles) sentem a necessidade de lirismo. A diferença está que no existencialismo o lirismo é do tamanho do universo e tenta fazer sentido do não-sentido. Existe o homem e é tudo.

Uma pessoa descuidada é diferente de uma pessoa perdida. Andamos estes dias de bicicleta por vários quilômetros e foi divertido pois vimos as ruas de Cuiabá; numa delas vi um andarilho. Ele parecia forte, capaz de qualquer coisa. Como a vida cuida de pessoa assim, e de tantas outras, eu quero ser cuidado. Ontem eu saí de casa seguindo a recomendação da minha esposa de não voltar. Uma palavra à tôa que eu não quis perdoar. Consegui beber umas cervejas e jogar conversa fora dentro da universidade com meus amigos, e hoje voltei ao mundo comum. Mas alguma coisa mudou. Alguma coisa sempre muda.

Aproveitei a viagem, portanto. Vi a praça do RU à noite, os drogaditos de lá. Há muito tempo eu não estive tão perto de voltar a ser como eles, afinal estava entediado e chateado com minha situação doméstica. Gosto de brincar, o espírito entretido (ainda que sem sarcasmo), mas a verdade é que nunca sabemos de nada. A vida bem aproveitada e o espírito bem vivido é trágico. Eu me vejo perdendo quem eu amo e tudo que tenho na busca desta pureza tomada muito cedo, mas não vejo isso como incomum ou errado ou inevitável. É apenas algo que eu vejo. Tantos bilhões de pessoas no mundo, tantos universos em tantas eras, que diferença faz um destino individual? Também estivemos nas avenidas andando e nossas bicicletas, vendo as mudanças na cidade em relação às festividades do aniversário da cidade; já não era sem hora, sair de casa e passear após duas semanas trancado.

Viver feliz para morrer feliz

O que eu quero dizer sobre existencialismo, e por consequência sobre os testes de aceitação que o mundo impõe e sobre as mudanças é que é preciso aceitar sem reclamar. É preciso permanecer como se fosse uma tabula rasa, sem programas que distorçam a mente e a visão das coisas. Como um santo ou como um mendigo, é preciso estar desamarrado das coisas, como quem está apenas de passagem no mundo. É uma aprendizagem longa e que exige grande paciência. Tempo, eu diria, se isso tempo for. Compreensão súbita também é possível, mas quem consegue ser digno destes insights a ponto de fazer as mudanças necessárias de pronto? Melhor ainda: quem muda alguma coisa, senão apenas deixa a mudança acontecer, na sequencia da mudança súbita de compreensão? Causa e efeito, como tantos aplicativos, é só uma convenção.

Uma batalha se aproxima, eu vi nos olhos dos transeuntes. Não é política, tampouco moral — é mais íntima e mais simples que isso. Não é questão de existência, não é questão de status; coisa que se resolve com a celebração diária de tudo que se ilumina, mas de encontro consigo mesmo. A satisfação do Ser, a completa e absoluta satisfação do ser consigo mesmo.

A ciência anda sobre ataque, dizem os noticiários. Em tempos de olavismo, isso fica mais que evidente. Ninguém vê, no entanto que não é só a ciência. A espiritualidade tem recebido golpes fortes de todo lado, e não importa se são em seitas ou religiões perfeitamente estabelecidas, O TESTE DA FÉ JÁ COMEÇOU. Para você que acha tudo absurdo, só posso dizer que você tem os recursos necessários para tanto. Para mim ainda é uma árdua caminhada. Mas eu aprendi a voltar a trás e a mudar de ideia. No amor e na guerra tudo vale.

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