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Por uma revolução multilateral do cotidiano

capa A tese dos Estados Unidos como um país imperialista está longe do escopo dos meus conhecimentos, embora seja tido também como um fato amplamente conhecido. Suas bases militares não apenas impedem conflitos, mas pode semear discórdia. E assim como aconteceu na guerra travada pela URSS no mesmo Afeganistão nos anos 80, causando terríveis traumas psicológicos nos soldados sobreviventes, acaba sendo esta também uma questão dos soldados americanos — um fenômeno aparentemente sui generis, mas de forma alguma raro mesmo no Brasil, como aponta este estudo de TEPT (link) para sobreviventes de acidentes de trânsito.

Íamos fazer a revolução! Era o que nos diziam. E nós acreditávamos. Imaginava que tinha algo romântico pela frente(…). Quando uma bala atinge a pessoa, você escuta (…), é uma pancada úmida característica. Um conhecido seu cai ao lado com o rosto para baixo, naquela poeira cáustica feito cinza. Você vira o rapaz de costas: nos dentes está preso um cigarro que você acabou de dar a ele. Ainda está aceso…

Aleksiévitch, Svetlana. Meninos de Zinco. Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Consideramos geralmente nosso país como um país pacífico, sem riscos externos como tsunamis, terremotos ou furacões. Nossa imensidão geográfica nos permite sonhar com uma utopia futurista, de exportação de cultura e de sonhos. Ainda assim, a pandemia atingiu o país mais do que bombas atômicas e desastres naturais. Um verdadeiro e silencioso genocídio acontece neste momento com os remanescentes indígenas que ainda habitam seus territórios e suas florestas. As riquezas espoliadas diretamente do sangue dos ianomâmis, por exemplo, estão sendo contrabandeadas para o exterior — e o crime organizado tem um grande interesse nas medidas de afrouxamento da proteção do meio ambiente e dos territórios indígenas.

Desde crianças somos lembrados de nossas riquezas como a Amazônia e o risco sempre presente da internacionalização dela; a alta cúpula militar de nosso país — e a mesma responsável pelo andamento do governo atual — sempre engajada nessa narrativa, e impelida a cercar, vigiar e habitar o bioma para não perder para os estrangeiros. Curiosamente, eu sei desta riqueza, eu nasci nela, ainda que em uma fronteira muito tênue — dentro da bacia amazônica, mas ainda no estado vizinho — e só soube disso mesmo quando viajei até Belém do Pará, em 2009. A tendência, então, era ver uma floresta cada vez mais imponente, rios mais caudalosos e homens e mulheres cada vez mais fortes. Também era onde as coisas aconteciam na informalidade, nos acordos tácitos e arranjos improvisados. Difícil crer que ela está assim tão ameaçada, mas o fato é que ela está.

Me incomoda, portanto, o assunto mal concebido nas falas de pessoas do exterior falando de como devemos cuidar da Amazônia na mesma medida que deve incomodar um americano (ou estado-unidense se você for desses) vendo um brasileiro aleatório comparando os acontecimento de Cabul com o de Saigon na guerra do Vietnã. O excesso de “wokeness” dos tuiteiros é o verdadeiro culpado da queda do império americano? Da possível fim de toda a amazônia? Ainda assim reclamamos, por exemplo, o mesmo tratamento duro ao tuiter oficial do nosso presidente que eles tiveram com o, agora ex-presidente, Trump.

Claro, o tuíter é do jeito que é, e é besteira reclamar dele — e já encontrei ali muitas pérolas que o algoritmo me presenteou, como a da moça lembrando o absurdo que é ver o pessoal da esquerda comemorando o que aconteceu porque prejudicou o “imperialismo americano”. Ainda mais quando sabemos que as verdadeiras vítimas do “novo” regime serão as mulheres afegãs. Um filme que assisti há algum tempo me vem à memória, A Caminho de Kandahar, do cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf; me lembro especialmente dos olhos da protagonista — além do drama das mulheres oprimidas que fica evidente à medida que a jornalista adentra a sociedade afegã em busca de sua irmã.

Geralmente tratamos com desdém os problemas que o “primeiro mundo” discute porque nós ainda estamos lidando com problemas bem mais importantes para nós, como a falta de saneamento, o feminicídio e o descaso educacional. E não pretendo dizer que se deve mudar o enfoque, senão alertar que nada disso é realmente desconectado do mundo lá fora. Na ojeriza que causa aos gringos ver o machismo e misoginia de fanáticos religiosos armados até os dentes alcançarem o poder, deveria estar também o nosso sentimento, pois a nós os males do fanatismo não é desconhecido. E assim como afeta eles hoje, pode nos afetar amanhã.

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Da minha parte, tento costurar decisões menos monocráticas, e procuro saber o que pode ser feito para que, à medida que o mundo acaba, um novo mundo, mais justo e harmonioso possa emergir. Isso não depende de mim, unicamente, mas naquilo que depende, eu quero e vou definitivamente intervir. E apesar da generalizada incerteza que se vive, estou certo de que posso viver sem automóvel e à revelia do trabalho sem sentido, apenas pela sobrevivência, por exemplo. Explico.

O carro, ao menos no que vejo por aí, é um valor inerente, e muito apreciado por todos. Daí que renunciar ao automóvel pessoal é o equivalente a dizer “eu quero é ver o oco”. E, de fato, eu cresci vendo meus pais batalhando pela obtenção e manutenção do automóvel. Eu até mesmo dirigi um pouco o fiat uno mille da minha mãe à guisa de treinamento ou apenas por diversão, ainda jovem — mas sem nunca realmente me preocupar em ter um e muito menos em tirar a habilitação. Meu primo, da mesma idade, não apenas tirou a carteira como se tornou um exímio motorista, ainda muito novo.

Com a pandemia apontando para um fim, sinto que tanto isso, como a necessidade disso, se perderam. Renunciar ao carro não é renunciar ao deslocamento, principalmente depois do advento dos aplicativos de carona; mas é sim renunciar a um objeto obscuro do desejo que pode te matar e matar outros; e é, ao menos para mim, renunciar a uma indústria de petróleo e borracha que aumenta sempre o lixo e a emissão de carbono no planeta. E se for preciso conviver com a dúvida e a admiração por quem possui um carro, por mais contraditório que isso seja, tudo bem. Eu conheço também pessoas admiráveis que nunca tiveram ou terão um carro.

ABOLI A Abolição do Trabalho por Bob Black. Ed. Veneta

E, da mesma forma que renuncio ao desejo narcisístico de metal e vidro tão bem representado no romance Crash do Ballard, tento abordar uma vida mais independente dos ideias de produtividade do passado, em um movimento que não vai nem para a esquerda nem para a direita, mas que ascende em um novo ideal político, anarquista, de certa forma, pós-esquerda de todo. Isso porque nem mesmo a direita ou a esquerda podem satisfazer meus anseios mais profundos de uma vida mais digna e criativa; isso porque basta uma andada rápida por um instagram ou um tik tok agora para perceber como a mudança do mundo de trabalho está acontecendo rapidamente

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O capitalismo tardio já se faz um conceito ultrapassado quando tudo o que se vê em notícias e na vida real é que é mais fácil o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Quando qualquer um pode se tornar um empreendedor e comprar e vender com um toque de tela; com o tempo extra causado pelo isolamento, sem aulas presenciais, e com um tempo livre que em tempos de pandemia se parece com definhamento, eu anseio por um fim do medo que mantenha nossa capacidade de se reiventar, de criar vazios que preenchem nossa vocação de brincar. Por um perene estado de carnaval, por uma economia fluída e não estagnada em pareceres técnicos conservadores — por um mundo que realize a capacidade inventiva do brasileiro pela qual ele é tão famoso.


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