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Photo by 𝓴𝓘𝓡𝓚 𝕝𝔸𝕀 on Unsplash

Na cena do filme de 2003 de Wolfgang Becker, Adeus, Lênin! o protagonista finalmente junta coragem e chama a moça que cuida da sua mãe no hospital para sair. O local escolhido é, só fui saber agora embora tenha assistido o filme há dez anos, KunSthauS tacheleS, ou, o prédio ocupado por artistas em Berlim desde a queda do muro de Berlim. Segundo Seldin, no artigo “Práticas culturais como insurgências urbanas” o prédio foi um dos poucos prédios de Berlim poupados pelos bombardeios e pela ocupação no fim da Segunda Guerra; acabou sendo, após várias mudanças de dono, o local onde várias gerações de artistas fizeram sua própria casa e república.

Após a queda do muro, sua demolição completa foi marcada para fevereiro de 1990; contudo, durante a segunda onda de squats berlinenses, ele foi ocupado por um coletivo de artistas oriundos de Berlim Oriental, eventualmente denominado Künstlerinitative (“iniciativa de artistas”) Tacheles. Seldin, Claudia estudos urbanos reg., v.17, n.3, p.68–85, Recife, set./dez. 2015.

Esta cena do já citado filme se refere não apenas a abertura de um jovem ao amor, mas de um lado da cidade ao outro e de uma civilização à outra. Daí a efervescência cultural pela qual passava naquele momento da queda do muro em 1989, um momento de tamanho otimismo com o capitalismo que o historiador Francis Fukuyama chegou a dizer que era o Fim da História.

Este filme é de todo especial para mim, por que mostra não apenas os esforços de um filho para agradar a mãe, mas também o que significa viver em meio a turbulência social ao mesmo tempo em que se é jovem e precisa encontrar um sentido para a própria vida. Quando o socialismo da união soviética na Alemanha ruiu, dando abertura ao capitalismo e ao ocidente, muita gente de fato não se acostumou, de tal forma que ainda hoje hajam inconsistências por toda a Alemanha, de injustiças feitas e reparações nunca feitas (link podcast do Folha de São Paulo). Em perspectiva, vemos que se aquele era o fim da história, então vivemos em um limbo onde contingentes inteiros vivem à mercê de corporações, altas e baixas do mercado e o que é pior, abrindo mão de direitos por um milagre econômico que pode nunca acontecer — o paraíso nos foi prometido apenas para logo depois ser tirado — e um contrato com uma miríade de cláusulas chegar às nossas mãos já assinado.

Este é o caso de um Brasil em meio a uma pandemia, com crise econômica, fiscal e gerencial; um país que não sabe o que será de si, pois mal começava a girar os motores da economia só para logo depois ter que parar; um país que já saía de um golpe parlamentar que derrubou a primeira presidenta da história; um país que ainda deve muito aos indígenas, aos quilombolas e a tantos outros; um país que ainda procura uma saída após uma quebra de confiança abrupta na globalização causada pela crise de 2008. Para muitos esta resposta era um presidente duro e de poucas variáveis; que “brigasse” pela economia e pelo povo brasileiro. Mesmo o mercado se iludiu junto e acabamos todos, com esse abacaxi por descascar. As cidades estão à beira de um lockdown, só impedido pelos desavisados ou relutantes. A inércia é uma força da natureza tanto física quanto social.

O que será do mundo após a pandemia é uma previsão que desafia até mesmo os mais afiados dos analistas. Dentro de casa, tudo o que vemos é um céu mudando de cor e nada mais; as cidades para mim sempre têm sido, e foi preciso uma boa dose de desencantamento para saber disso, um mercado a céu aberto; de tal modo que se não fosse o capitalismo, muitas poucas pessoas se arriscariam a viver tão juntas ainda. Isso não quer dizer que eu não veja o potencial utópico das nossas cidade, mas, como disse a própria urbanista Ermínia Maricato em uma apaixonada palestra do café filosófico, o que se faz do espaço nas cidades é absolutamente execrável.

Para Ermínia Maricato, em sua palestra no CPFL, a melancolia deriva justamente da sensação de impotência diante do mundo; mais ainda, um antídoto à melancolia de nossos tempos é justamente se voltar e se insurgir contra a expropriação de nossos direitos pelo capitalismo e donos dos meios de produção; em sua palestra aprendemos que Milton santos, Walter Benjamin e a música Cidadão (de Lucio Barbosa Dos Santos ) estão mais relacionadas do que possamos imaginar. Sua crítica se localiza exatamente na intersecção da falta de virtus/conatus e desigualdade social. Segundo ela precisamos acabar com a desigualdade se quisermos viver dignamente em um país igualmente digno; e uma das maneiras de fazer isso é acabando com a desigualdade territorial, pois a especulação imobiliária se alimenta do mal que nos ataca.

Uma das notícias que chegaram a mim após a campanha para ficar em casa iniciar, foi de que estavam instalando torneiras em locais públicos de são Paulo (link notícia) para os sem teto terem como lavar as mãos. Isso só denota que antes disso, para as autoridades, a água não era essencial. Só passou a ser após uma pandemia de proporções absurdas chegar a todos os estados da federação; e esse é só um exemplo cotidiano. Tem muito mais acontecendo, demonstrando que o capitalismo, tal como vinha se desenvolvendo precisa ser detido e remodelado inteiramente. O mesmo se aplica para qualquer política pública que vise fomentar este mesmo capitalismo em detrimento do povo brasileiro.

Os chamados coletivos urbanos vêm para questionar as condições em que se encontram os espaços públicos através de manifestações e apropriações de caráter artístico, político e urbanístico em sentido amplo. Todos se unem em torno do mesmo ideal de gerar discussão sobre a prática de construir a cidade através de apropriações e ações imprevisíveis. Horin, Paula.

Em Várzea Grande, ano passado, eu tive a sorte de fazer uma pesquisa em um bairro chamado Lagoa do jacaré. Lá, você encontra casas antigas e novas, dispostas de maneira semi-organizadas nas proximidades do imenso território exclusivo do aeroporto; é lá, na avenida 31 de março onde as pessoas iam caminhar no fim da tarde. Neste mesmo bairro existe um ou dois mercados grandes, e uma lagoa, a lagoa do jacaré, que dá nome ao bairro. Nela se encontram todo tipo de arte de rua, grafitti, bancos feitos pela população e uma geladeira usada para fazer vezes de biblioteca; um projeto semelhante foi feito na UFMT um ou dois anos atrás. Muitas faixas pedem um parque ali. E parece que alguém, ou alguéns, andou plantando e cultivando ali um jardim. Tudo indica um cuidado democrático do espaço, que, a rigor, não é de ninguém.

Como demonstrou Hori no seu texto, as melhores ideias em geral são as mais simples. Um parque onde seus filhos podem brincar, pode em muito superar ideias mirabolantes que tentem suprir necessidades igualmente urgentes mas que na prática ainda não estão ligadas à necessidade que a cidade tem nesse momento, que é um lugar para pessoas de pessoas, que promova a cordialidade e afetuosidade e que traga resultados não apenas no futuro mas no presente. No texto dela proliferam exemplos, mas todos nós que vivemos os cotidianos urbanos sabemos o que ela quer dizer. E, portanto, participamos, direta ou indiretamente das decisões feitas em favor desta mesma cidade.

Em tempos de crise de liderança, podemos todos participar de um projeto de auto liderança e autogerenciamento nas cidades através destes coletivos sociais; mais do que isso, precisamos. Assim como os artistas da tacheleS, não estamos fazendo nada além daquilo que nos é mais próprio, que é viver uma vida mais digna e plena de beleza. Quando vemos um artista de rua, ou ouvimos o crente com megafone na praça, sabemos, aquilo é a vida em movimento e é parte da vida e do movimento que nos compõe. A cidade ainda é em si um território do capital, e se insurgir contra o capital é criar no aqui e agora uma nova proposta de governo. Em tempos de crise de saúde e econômica, é mais do que justo repensarmos o que desejamos de nossas cidades quando finalmente formos livres para ir e vir como bem quisermos.

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