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É passado um ano e pouco — penso que um ano e meio — que eu comecei a ler um livro do Nobel de literatura, Kazuo Ishiguro, O Gigante Enterrado. Não qualquer livro, mas uma história de aventura e fantasia bastante peculiar; eu estou neste projeto quase impossível de ler meus livros todos — os comprados principalmente e fazer isso sem comprar nenhum que fure a fila. Tá difícil, viu?

Esse livro em questão conta a história da Beatrice e do Axl, dois velhos bretões em um Reino Unido medieval, muito antigo, mas cuja era não é revelada. Neste mundo existe uma névoa que impede as pessoas de lembrarem-se mesmo de fatos ocorridos há poucas horas, às vezes minutos. Têm dragões e outros seres místicos também.

As pessoas até se lembram uma das outras e de suas identidades, mas acontecimentos corriqueiros são esquecidos com uma velocidade estonteante. Também, esse esquecimento contribui para uma vilania maior; quando você não se lembra das consequências de seu ultimo ato é fácil repetir e não se importar com os resultados. Por isso mesmo e também por terem uma lembrança de já terem tido um filho que já não lembram onde está que eles, Axl e Beatrice, dois velhinhos abandonados pela própria comunidade, decidem partir.

Assim, Axl e Beatrice começam uma aventura, no melhor estilo velhinhos revoltados, em busca da verdade sobre a névoa do esquecimento, do paradeiro do filho e das próprias lembranças, há muito tempo perdidas, temas que não são separados uns dos outras, como veremos. O autor propositalmente conta a história de uma maneira lenta, como que para acompanhar o ritmo dos passos dos dois velhinhos; a história, vemos ao fim e ao cabo, transcende a história individual do casal de idosos. Também, transcende a narração de fantasia épica comum que estamos acostumados a esperar.

detalhe da capa do livro

Lembro que eu li o desfecho deste livro cuidando do meu sogro em uma noite insone; eu não participei muitas vezes destes momentos, devo admitir (abnegação sendo algo que eu simplesmente tenho absoluta dificuldade em fazer), mas me lembro agora como estas duas pontas se uniram em um emaranhado de dias que me levam até o presente momento.

Meu sogro, que nunca me conheceu, estando acamado e doente desde que eu passei a participar da vida da mulher que viria a ser minha esposa, tinha 80 anos à época; faleceu em dezembro do ano passado. Eu lia este livro numa noite de revezar o cuidado dele ao longo da noite inteira; com grande tristeza de saber do destino cruel reservado ao casal de idosos na ficção; um ano depois, minha avó, que eu fui visitar a duas semanas atrás, estava em tratamento intensivo no hospital em Campo Grande. Uma vez lá eu fui visitá-la, e quando disse à família que uma vez bastara, que precisava voltar para trabalhar, que outras filhas poderiam ir no meu lugar, tive que me explicar para ouvidos moucos; minha mãe e minhas tias estavam completamente transtornadas com a perspectiva de perder a mãe, o que é bastante compreensível.

rio de janeiro, 2015

O Brasil é um país com grande contingente de jovens, ainda. Quando digo isso eu comparo com países como França e Canadá ou Inglaterra cujas populações estão envelhecendo e os jovens estão diminuindo; literalmente estão virando um país de velhos (é paradigmática a propaganda daquela agência de viagens estrangeira incentivando que os casais jovens fossem tirar férias e fizessem sexo, sim desse jeito, para gerar filhos).

Aqui no Brasil essa tendência também aparece, mas apenas em 30~50 anos para frente; teremos um país de velhos justamente quando formos, você que lê e eu que escrevo, muito velhos. E enquanto isso tramita no congresso e na discussão civil o projeto de emenda constitucional chamado reforma da previdência, que vai simplesmente liquidar a previdência. Queria ter eu a austeridade da minha avó (que saiu do tratamento intensivo e aguarda cirurgia) para suportar envelhecer em um mundo que prefere esquecer-se de seus velhos.

De volta à ficção: este livro de fantasia medieval mistura influências e inclui entre seus personagens um guerreiro que, eu fui saber mais tarde, é inspirado em Beowulf; tem outro que é praticamente um Quixote com Parsifal ou qualquer outro cavaleiro do rei Arthur (efetivamente ele é um Cavalheiro do Rei Arthur). Lendo o livro uma melancolia suave me invadiu, ou eu que deixei que entrasse, mas que só me colocou em frente a outra coisa que o livro conta; a persistência do amor romântico; a duradoura e forte ligação de um casal que se ama até a velhice.

Isso parece banal, pode até parecer contraditório; e para mim é uma lição difícil entender quer um relacionamento possa ter durabilidade. Quer dizer, tempos líquidos, certo? Temos até aplicativo para buscar encontros. Mais ainda, tudo um dia vai acabar, que diferença faz um romance de 30 anos ou de 30 dias? Ou, coisa que sempre tive comigo: melhor intensidade, paixão do que chatice de rotina. Ainda assim, existe uma tênue diferença entre não acreditar em amor duradouro e lutar contra o amor duradouro — essa diferença é que estabelece se somos capazes, ou não, de aprender.

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À parte às brigas de casais, o que quero dizer é que uma lição belíssima de paciência e entrega surge quando se atinge a compreensão do que seja um verdadeiro relacionamento íntimo; e não é somente baseado nesta leitura de O Gigante Enterrado que eu faço referência (quem assistiu Amour do Haneke vai saber do que estou falando. Ou ouviu a canção Jim Wise). E é nesta lição da paciência e da entrega que estão duas coisas que eu simplesmente sou incapaz de dominar, mas que agora são, impreterivelmente, parte da minha vida.

Quais os maiores arrependimentos dos centenários? Talvez eu nunca saiba senão em segunda mão, e você pode aprender um monte com os vídeos sobre este assunto que estão na internet, mas eu sei desde já que não participar de um amor tão grandioso, laborado e bem-cuidado como que eu posso viver hoje seria um destes arrependimentos.

À memória do Seu José

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