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Dizem que tudo que procuramos recordar se transforma a cada tentativa que fazemos; a memória sendo uma entidade orgânica e viva, nunca confiável como nada no ser humano pode ser.

Será por isso que me lembro tão pouco dos meus 15 anos, data em que conheci Nirvana (um cd emprestado dos meus primos que vinham do sul) e assisti Matrix pela primeira vez? Eu sempre voltando a esta época, sempre redescobrindo a mesma dureza da vida, de tantas maneiras diferentes.

Foi um ano turbulento no mundo, mas na minha cidade era apenas um ano como todos os outros; descobrir algo que abalava a minha crença em uma realidade fora de mim, que costurava entre diferentes tipos de crenças e mitos e que desenhava um inequívoco trajeto do herói, como foi feito em Matrix, no entanto, foi memorável.

Eu já desejara ser um herói outras vezes, como quando orei ao papai do céu para que me tornasse um cavaleiro do zodíaco, mas com Matrix eu vivi algo inteiramente diferente. Não esperei pela ajuda celestial, apenas me embrenhei na mitologia e filosofia que alimentava aquela história e nunca mais saí.

A jornada do herói como apresentada por Christopher Vogler no livro Jornada do Escritor é, como fui saber muitos anos depois, uma jornada arquetípica, isto é, que se baseia em ideias modelares que podem ser utilizadas por diferentes pessoas em diferentes contextos. Neo é o clássico herói forjado neste molde.

Saber disso não desfaz, no entanto, o encanto e a impressão que me fez aquele filme aqueles dias. Igualmente poderosas seriam, mas em outra direção, muito menos idealista, a impressão que tive ao ver Clube da Luta, também de 99. Muito menos formulado e com viradas de enredo sensacionais, o filme contemplou em mim a parte que não acreditava mais em heróis.

Por do sol em Cuiabá — foto do meu celular

Aparentemente a questão da realidade era a questão mais em voga na arte daquele tempo. Cronenberg fez um filme chamado Existenz, que não assisti à época mas que também questiona a realidade, de uma forma muito mais próxima do jeito Matrix de questionar a realidade. Clube da luta também o faz, mas através de uma abordagem psicológica.

Foi aos 15 que fui a Campo Grande estudar. Ali, diferente de onde eu vinha, havia acesso à lançamentos e outras coisas interessantes. Lembro que meu primo ganhou de presente um cd de Red Hot Chilli Peppers, Californication. Nos cinemas lançavam Beleza Americana, que eu assisti ao lado dos mais velhos e saí do filme eu mesmo 10 anos mais velho. Os computadores pessoais já se popularizavam, e o ICQ e o mIRC eram febre naqueles dias. Eu aprendi a jogar Magic the gathering, e fiz amigos que são amigos até hoje.

Foi um ano intenso, 99 e 00. Os jornais noticiavam um suposto bug do milênio que poderia quebrar as máquinas na virada de ano pois elas não iam conseguir entender a mudança de algarismo. Também, nos meus sentimentos de rapaz interiorano na cidade grande pela primeira vez, a necessidade de fazer os sacrifícios dos outros por mim valerem a pena era imperiosa mas também a adolescência sempre confusa com emoções sempre à tona botava tudo a perder. Seis meses intensos aos quinze anos se tornaram 2 ou 3 anos de tempo normal.

Foi uma explosão, e até hoje tenho com as ruas de Campo Grande uma forte conexão emocional; poderia discorrer sobre elas por horas. Mas eu voltei ainda no ano 2000 para o interior. A realidade me chamava, e em pouco tempo a rotina de antes foi restaurada, me apaixonei por lá e minha vida virou de pernas para o ar de vez. É um verdadeiro milagre que eu esteja aqui agora conseguindo falar disso.

Milagre também é poder ter por perto as pessoas que amo. Se virando com o que tenho, com o que consegui e com o que posso ser, consegui me despedir da minha vó em Campo Grande no meio deste ano e estive no aniversário de 80 anos do meu vô lá no interior. Distâncias e direções diametrais, mas que consegui vencer porque a conexão era mais forte do que as dificuldades. Antes eu pensava que poderia fazer o que quisesse conquanto tivesse vontade. Era um erro, eu entendo agora. Eu posso fazer o que quiser conquanto eu planeje e espere.

Os desafios maiores ainda estão por aí. Tive meu primeiro ataque de pânico há 8 semanas e só não foi pior porque eu percebi do que se tratava enquanto acontecia. O pior medo é o medo do medo em si. Saúde é questão primordial e pessoas muito mais fortes do que eu já sucumbiram por menos. Com a chance de fazer um mestrado vindo aí (passei em primeiro lugar na prova escrita, faltando apenas a prova oral) eu sei que além da ansiedade provavelmente síndrome de burnout e tantas outras podem estar à espreita.

(…) Do mesmo modo, nossos cérebros rápidos no pensar e por buscar algum alarde — nossos instintos dramáticos — estão causando concepções equivocadas e uma visão de mundo superdramática.

Rosling, Hans. Factfulness: O hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos . Record. Edição do Kindle.

Para evitar tais coisas estou tentando ter uma perspectiva mais positiva da vida, mesmo que seja só para equilibrar as constantes notícias ruins que nos bombardeiam. O viés que confirma um medo que é ancestral e feito apenas para nos preservar de perigos na savana é apenas um mal ajuste da evolução à esta civilização sem perigos do tipo. Terapia também, e é dito comumente por quem faz, deveria ser coisa do cotidiano de todos. Eu pensava assim da meditação também, mas eu me tornei relapso com o tempo. Não há nada a temer, no entanto, o presente é eterno.

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