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Um milagre termodinâmico

Elogio aos meus avôs através de leituras

capa Montagem de duas pinturas de Renoir — O Almoço dos Barqueiros (1881) e Au Cafe (1877) — estariam pensando um no outro?

Tempo que ficou fragmentado em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança, lembrança que somada a outras nunca forma a memória do que eu fui ou do que outros foram para mim. Uma quase memória, ou um quase romance, uma quase biografia. Um quase quase que nunca se materializa em coisa real como esse embrulho, que me foi enviado tão estranhamente. E, apesar de tudo, tão inevitavelmente. Cony, Carlos Heitor. Quase memória

Acabei essa semana um livro que já havia lido, um livro que fez parte da minha infância tardia, e que foi companhia em dias solitários na casa de meu avô. Meus avôs são incentivadores indiretos da leitura na minha vida, e associo a eles tardes inteiras lendo sozinho, na tranquilidade do campo, na quietude que somente as casas de nossos avós possuem.

Na casa de meu avô, eu lembro, haviam coleções interessantes de livros, muitos almanaques, além de vinis e fotos de família. Minha vó eu nunca tive muita chance de frequentar, por haver me mudado para o norte ainda criança, mas uma vez passamos umas semanas na cidade dela, quando ainda havia um hotel, e me lembro de devorar um livro sozinho lá, A Morte no Nilo de Agatha Christie, como já mencionei noutro texto, escrito por ocasião de seu falecimento, dois anos atrás:

(…) Minha mais antiga memória dela remonta aos meus 12, 13 anos, quando fui lá em Iguatemi e conheci melhor a cidade onde nascera. Ela tinha um hotel, e na frente do hotel um bar, onde ela vendia bebidas. (…) Iguatemi é uma cidade de velhinhos fofinhos na minha memória. Eu mesmo sou, nesta memória, um menino-velho deitado o dia todo, lendo um livro no quarto deste hotel; lá fora o ruído da rua e das tias a me chamar, mas eu gosto mesmo é do livro que estou lendo.

O livro em questão se chama Quase Memória, do Carlos Heitor Cony, um ensaio sobre a memória, ao mesmo tempo que é tributo à memória do próprio pai. Já nas primeiras páginas ficamos a conhecer esse homem de energia inesgotável, imprevisível, sonhador e ao mesmo tempo prático, que sempre ensina mostrando. Como o Arcano Louco do tarô, não existe maneira de prever seu próximo movimento, sua energia é transformadora, caótica até, dando a impressão de que se manifesta mesmo do além. Mas, ao contrário do Louco, o pai tem uma plateia preferencial para suas peripécias, e é o seu filho e narrador da história.

Eu gosto muito desse livrinho, por razões sentimentais principalmente. Eu o li quando tinha uns catorze anos, em uma das raras vezes que frequentei diariamente a casa de meu avô, que ficava no centro da cidadezinha. Sem lembrar exatamente as circunstâncias, eu passei grande parte da leitura daquele livro jogado no terraço do predinho verde em que ele viveu durante toda a minha vida. Só posso imaginar que o livro estava na casa ou na biblioteca da casa, ou era do filho da Irma, a esposa de meu avô, mas não tenho certeza. Em fevereiro deste ano, no entanto, ele faleceu por causa do Covid 19 e outras comorbidades. O que explica eu tê-lo retomado.

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Ler esse livro é conhecer um pouco da história do Rio de Janeiro, do fim do jornalismo clássico e do início dos anos de chumbo. Foi até então, segundo o autor, uma época mais simples, encantada até, e é de encantamento que o autor quer nos falar, talvez o encantamento que as pessoas podem trazer as nossas vidas, e o encantamento que é a própria vida (e que torna acontecimentos como a perda e o luto apenas detalhes).

Lembro que na minha primeira leitura eu fiquei muito emocionado com as descrições envolvendo o pai do narrador, que de fato é uma figura central, mas nessa segunda leitura meu coração apertou mesmo foi com a despedida da mãe; ainda assim, é um livro que parte do ponto de vista da relação pai e filho, e assim o é por escolha do autor e não por mero descuido (nisso me lembra a Martha Batalha que começa a contar sobre a empregada da Eurídice Gusmão em A Vida invisível de Eurídice Gusmão e depois recua dizendo algo como, “essa é outra historia”, nos lembrando que narrar é criar limites).

Esse livro, que pode ser considerado como um relato sentimental e amoroso sobre o próprio pai, muito me afeta hoje pois há algum tempo não estou em excelentes relações com meu próprio pai. Na minha infância, no entanto, eu e ele vivemos muitos momentos bons, semelhantes ao do narrador deste livro, como naquele dia em que ele fez um papagaio para mim ou quando ele fez um carrinho de rolimã para não me deixar de fora da nova onda entre os meninos. Tudo sempre da maneira cuidadosa e esforçada com que ele faz as coisas. E em questões mecânicas e de gambiarras, esse espírito livre que o pai do narrador possui em muito ressoa no meu pai, que manteve em sua casa por muitos anos uma oficina e um amontoado de coisas da qual só ele compreende a utilidade. Sei também que lembra o pai de muita gente.

De certa forma a crítica de que esse livro é de “homem admirando homem” faz sentido, sim, mas apenas em uma perspectiva ampla, uma vez que a sociedade em que o narrador cresceu e mais ainda, o pai do narrador, é uma sociedade machista e conservadora estruturalmente. Faz sentido do ponto de vista psicológico, também, uma vez que a primeira expressão de masculinidade de um menino na vida é o próprio pai. Nisso eu gostaria de reiterar minha dívida de gratidão com meu pai e minha mãe, que se esforçaram juntos para me criar — ela como mãe por acidente, ele como pai por opção. No fim das contas não é isso que importa?

A reparação histórica do autor, em relação ao que ele escreveu, está, na minha opinião, em ser direto e dar nome aos bois em relação à ditadura (que é, afinal, o paroxismo da doença do machismo). Também é preciso notar que ele pinta seu pai como humano e nada mais que isso (muito embora ele possa parecer quase uma entidade mágica); eu, como homem, tive problemas nesta segunda leitura em aceitar os casos extraconjugais do pai do narrador, mas não posso dizer que me surpreendi — não há vestígios de hipocrisia ali, aquela era a sociedade da época (hoje mudou muito pouco, mas ainda existe uma tentativa de esconder ao passo que naquela época não). Apesar de ser uma obra de ficção, é sabido que a inspiração vem em grande parte da vida do autor, a ponto de não sabermos exatamente onde começa um e acaba o outro — além disso Cony recheia o livro com nomes e acontecimentos verídicos.

Quem procurar ler o já citado A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (ou ver o filme, que consegue ser mais cru e direto nessa questão), vai ver, como dois lados da mesma moeda, como se construiu a modernidade desse país, e isso inclui aquilo que ele tem de melhor e de pior. Quando li esse livro em setembro de 2019 eu pensei então muito na minha avó, nas dificuldades que todas as avós enfrentaram. Lendo esse eu não esqueci daquele, e a mãe do narrador, que nem nome possui, está presente à sua maneira, dando suporte à sua maneira, e dando uma última lição também à sua maneira. Recomendo ouvir o podcast Paiol Literário com uma entrevista do próprio autor para melhor compreensão de quais eram os pontos de vista do autor, do seu local de partida, e como ele via o mundo. É também um belíssimo registro de um escritor genial, de idade avançada porém de inteligência lúcida.

Finalmente, a leitura desse livro, há apenas duas semanas e meia do aniversário de meu avô, cria uma ponte única com ele, pai de minha mãe e também pai de todos nós, o único avô. Ainda que ele fosse reservado e nem um pouco dado a performances públicas como o protagonista de Quase Memória, ele sempre se fez presente, e foi ele mesmo um filho exemplar, que cuidou do próprio pai até o fim. O autor, com sua habilidade formidável de contar histórias, nunca perdendo naquilo que ela tem de essencial, foi um lume no início de minha adolescência e me fez ver logo cedo do que a literatura é capaz emocionalmente. Hoje, mais uma vez, o autor me mostra como a literatura pode dar alívio e senso de perspectiva em relação à dor da perda, do luto e do sofrimento. O show deve continuar.

https://medium.com/quisquilae/a-vida-n%C3%A3o-passa-de-um-sonho-c4ce7cba500e https://www.goodreads.com/book/show/25529176-quase-mem-ria https://www.goodreads.com/book/show/29889519-a-vida-invis-vel-de-eur-dice-gusm-o https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/19/gregorio-duvivier-a-vida-invisivel.htm https://open.spotify.com/episode/33IvvAlLdOspzpIxbn7Tvr?si=yJN9XT7sSLqJch_6KJC-eg

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