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“Se ao menos houvesse um dogma em que acreditar. Tudo é contraditório, tudo é tangencial; não há certezas em lugar algum. Tudo pode ser interpretado de uma maneira e depois novamente interpretado no sentido oposto. Toda a história do mundo pode ser explicada como desenvolvimento e progresso e também pode ser vista como nada além de decadência e falta de sentido. Não há alguma verdade? Não existe uma doutrina real e válida?”

O Mestre nunca tinha ouvido ele falar tão ardorosamente. Ele caminhou em silêncio um pouco e então disse: “Há verdade, meu menino. Mas a doutrina que você deseja, o dogma perfeito absoluto que sozinho fornece sabedoria, não existe. Nem deve você desejar uma doutrina perfeita, meu amigo, anseie antes pela perfeição em si mesmo. A divindade está dentro de você, não em idéias e livros. A verdade é vivida não ensinada”.
Hermann Hesse, O Jogo das Contas de Vidro

Recentemente o, agora ex-ministro da educação, Sr. Ricardo Velez comentou que as universidades eram destinadas à elite. Não à elite econômica, mas às elites do saber, do intelectual. Isso é revoltante de tantas maneiras que não posso sequer enumerar. Mas pode conter algo de sábio no fim das contas. Talvez por isso vou dar uma volta no assunto examinando o que ele quis dizer.

Elite é uma palavra que vem do francês, elitè, que quer dizer algo como “o que há de melhor” (Houaiss). Em sociologia, segundo o mesmo dicionário, significa minoria que detém o prestígio e o domínio sobre um grupo social. Por isso chamamos alguns atletas de atletas de elite, porque eles são os melhores dentro daquele conjunto de atletas. Ainda assim, o termo elite carrega uma pesada carga de significados. A respeito das elites no decorrer da história, Harari foi bastante cínico:

Esses excedentes de alimento confiscados alimentaram a política, a guerra, a arte e a filosofia. (…) A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água.

Harari, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade

Mas, se eu entendi corretamente, as universidades para o filósofo colombiano seriam, deveriam ser, o lugar de uma elite, para as elites. Nela teríamos professores para turmas minúsculas e ela mesma seria uma espécie de reino distante, com cientistas e intelectuais puros e virtuosos, talvez vivendo e produzindo à margem do mundo, sem se preocupar com nada além de pensar e encontrar soluções. E nenhuma implicação no mundo real seria feita, servindo apenas como uma espécie de farol das humanidades. Até que não soa mal, pois está me lembrando a Castália do último romance do Herman Hesse, O Jogo das Contas de Vidro.

Não consigo, porém, evitar de associar esta afirmação com a demanda neoliberal de privatizar universidades, privatizar a educação e privatizar a pesquisa. Tirando a oportunidade de quem não possui recursos fica mil vezes mais fácil “elitizar” a educação. E de fato, seria um movimento natural. Claro, pode ser que no processo se percam uns dois Carlos Chagas e uns três Carlos Drummonds, que vão precisar trabalhar para sobreviver; o importante é que “tiramos as ideologias de esquerda” da educação.

Para ser sincero, nas universidades federais já existe uma elite inaudita; chamamos de cursos concorridos. Cursos como o de medicina; mas isso é mais um exagero retórico do que uma realidade. Alunos de medicina sofrem eles mesmo as durezas de uma universidade de poucos recursos; a própria natureza desta carreira os solidariza com os outros estudantes mais (muito mais) do que a maioria dos nossos governantes, e isso inclui, sem dúvida, o atual ministro da educação e o presidente, que sob o termo nada técnico de “balbúrdia” justifica tirar mais dinheiro ainda das universidades. Também, ele joga no mesmo balaio de “humanas” um carreira inteira de estudos que é tradicional em toda a cultura ocidental. Zero surpresas, na ditadura os cursos de filosofia foram os primeiros a serem fechados. imagem meramente ilustrativa

“Devemos estar conscientes dos sonhos?”, Perguntou Joseph. “Podemos interpretá-los?”

O Mestre olhou em seus olhos e disse secamente: “Devemos estar atentos a tudo, pois podemos interpretar tudo.”
Hermann Hesse, O Jogo das Contas de Vidro

No romance do Herman Hesse sobre um mundo utópico do séc. 23, onde todas as nações dão sua contribuição para que Castália, o reino das elites intelectuais, possa existir, fica claro, primeiramente, que não podemos viver o tempo todo com os dois pés na idealidade. Neste romance, o protagonista, Joseph Knecth, que se desenvolve até se tornar o mais virtuoso de todos os intelectuais de Castália, era nada mais, nada menos do que um rapaz pobre e órfão.

A impressão que se tem até o fim do romance é que tudo é ideal demais, alheio demais e perfeito demais, mas que para que Castália existisse teria que haver uma boa vontade das nações do mundo que fosse mais perfeita ainda. E nada é mais longe da realidade do Brasil do séc. 21 do que isso. A idealidade, eu desejo ressaltar, é apenas um sonho do qual que ainda não despertamos. Atualmente muitas pessoas defendem os cortes das verbas das universidades justamente por elas estarem distantes demais da realidade dos brasileiros. Ainda que mais de 90% de toda a pesquisa seja fruto das universidades federais. Ironia das ironias: as universidades federais foram um projeto da ditadura.

Hesse estava fazendo apenas um exercício intelectual ao descrever Castália e os jogos das contas de vidro, em um mundo que realmente seria perfeito para uma animação dos estúdios Gibli, porém as declarações do ex-ministro não foram deste mesmo teor. Se ele acha que as faculdades estão trabalhando para nada, que formamos motoristas de aplicativo ao invés de cientistas porque não selecionamos suficiente bem os alunos e os professores, então ele tente sentar em uma cadeira todo dia por 4 horas durante quatro anos com o fim de aprender uma arte, ciência ou profissão. Os desafios são bem maiores do que se tornar um motorista de uber, eu garanto.

E se, o novo antiministro da educação, chama de balbúrdia o ambiente universitário, só posso afirmar que ele está sendo absolutamente autoritário (o que condiz perfeitamente com a postura do atual governo). E que isso denuncia uma miopia de quem esta eles mesmo muito distante da juventude e das mutações pela qual passa, e precisa passar, a juventude brasileira; é um rito de passagem e um momento onde tudo na vida converge para a transformação.

As universidades, como uma crisálida de borboleta, deveriam ser protegidas, respeitadas e pacientemente suportadas. Como os oceanos, são um bem da humanidade e precisam de ajuda do exterior para sobreviver; mas isso é coisa de literatura, de ficção científica… o que temos hoje é um governo para elites que não chegarão nunca a lugar algum. Aos brasileiros só resta observar a ruína de tudo, educação e meio ambiente, calados e dormentes, como quando levamos sete a um da Alemanha.

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